Mortalidade materna duplicou na pandemia
Aumento deu-se em razão do enfraquecimento de políticas sexual e reprodutiva da mulher

A mortalidade materna no Brasil duplicou durante a pandemia de covid-19. A taxa saltou de 57 mortes a cada 100 mil nascidos vivos, em 2019, para 67, em 2020, e para 107 em 2021, retrocedendo aos índices da década de 1990. O cenário se desenhava enquanto o médico moçambicano Charles M’poca Charles dava início ao seu doutorado na Unicamp, em 2020. Diante dos dados, imediatamente ele traçou um paralelo com os números de Moçambique, onde, antes da disseminação do coronavírus, registravam-se 408 mortes maternas a cada 100 mil nascimentos. Orientado pelo professor Rodolfo de Carvalho Pacagnella, Charles focou sua pesquisa nos impactos causados pela pandemia na saúde sexual e reprodutiva da mulher, no Brasil e em seu país de origem, e revelou que a mortalidade materna é apenas a ponta de um iceberg.


Defendida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a tese ganhou menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2025. A conclusão do estudo alerta sobre a necessidade de priorizar os cuidados às gestantes nas situações de emergência sanitária, como as pandemias que virão, inevitavelmente, de acordo com previsões de cientistas em todo o mundo. O médico moçambicano também chama a atenção para a importância da colaboração em pesquisa entre os países do Sul Global, como Brasil e Moçambique, “para que nós possamos gerar nossas próprias evidências e construir respostas para nossas realidades.”
Urgências e vulnerabilidades
A tese aponta que, em situações de crise sanitária, as gestantes e puérperas precisam ser consideradas como grupos prioritários de atenção à saúde. Conclui, ainda, que a população de gestantes deve ser incluída no desenvolvimento de vacinas e que a oferta de planejamento reprodutivo e de assistência à mulher no período gestacional não pode parar mesmo diante de emergências sanitárias. Como prevenção para um próximo contexto de crise, indica, é preciso investir com urgência em sistemas de saúde resilientes a situações de emergência em saúde pública, como novas epidemias, que ofereçam acesso equitativo e cuidado de qualidade para as mulheres.
Para Pacagnella, a pesquisa indica a necessidade de se pensar uma política de proteção às mulheres. “Diante de uma circunstância como essa, nós temos que olhar para as mulheres como um grupo alvo. Nós só fomos reconhecer isso no Brasil no meio do segundo ano da pandemia”, afirma o orientador.
Como uma verdadeira lente de aumento, a pandemia de covid-19 expôs as fragilidades nos serviços de saúde voltados para as gestantes e puérperas. Os problemas já existentes pioraram em larga escala. Houve uma redução de 68% nos serviços de contracepção nesse período em nível global em 2020. As estatísticas representam um nítido aumento da vulnerabilidade da mulher durante a crise sanitária. Os serviços de planejamento familiar caíram 44%; os de consulta pré-natal, 39%; a assistência a vítimas de violência por parceiro íntimo, 39%. As desigualdades sociais, econômicas e regionais no acesso aos cuidados também foram acentuadas no período.
Sul-Sul
Após trabalhar por três anos e meio como clínico geral na área de saúde materna, em Maputo, capital moçambicana, Charles foi autorizado pelo governo de seu país a prosseguir seus estudos – sua formação em escola pública o impelia a trabalhar para o governo no interior do país. Em 2018, ele veio para o Brasil e fez seu mestrado na Unicamp.
“Eu tinha especial interesse em estudar a saúde materna e o perinatal porque os dados do meu país eram dramáticos. A mortalidade materna era muito alta. Eu precisava melhorar esta questão. Mas não bastava só saber o que estava se passando. Eu precisava gerar conhecimento para melhorar aqueles indicadores”, explica o médico.
Na avaliação de Charles, a indisponibilidade de informações sobre a saúde da mulher em idade reprodutiva, incluindo gestantes e puérperas, nos países de média renda (caso do Brasil) e de baixa renda (como Moçambique), foi uma das motivações para a cooperação Sul-Sul, entre pesquisadores dos dois países. “Produzimos dois editoriais, publicados no International Journal of Gynecology and Obstetrics e no The Lancet, chamando a atenção dos pesquisadores do continente africano e de outros países de média e baixa renda sobre a necessidade de gerar conhecimento sobre essa temática”, lembra.
“A saúde materna é vulnerável às alterações ou impactos quando surgem epidemias ou pandemias, bem como eventos extremos, sejam climáticos ou de outra natureza”, afirma Charles, que viu sua pesquisa se desdobrar a cada avanço. Nesse contexto, foi criada a Rede Brasileira em Estudos do Covid-19 em Obstetrícia (Rebraco), que na segunda fase teve apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS), para a qual Charles passou a colaborar.
“A ideia da tese foi oferecer um olhar sistêmico para mostrar o quanto a pandemia – e isso vale para outras condições de emergência de saúde pública – trouxe de impacto para a saúde materna e perinatal. Nós estaremos diante de uma nova pandemia em breve, e quanto mais atacarmos o meio ambiente, mais vamos sofrer com isso. Essa é outra linha que estamos trabalhando agora”, revela Pacagnella.
IMPACTOS DA CRISE SANITÁRIA
Em Moçambique, foram avaliadas cerca de 250 mulheres, entre outubro de 2020 e janeiro de 2021, período em que Charles realizou seus trabalhos no Hospital Central de Maputo. “Avaliamos a prevalência da covid-19, e em termos de desfechos gestacionais. Nosso estudo mostrou que a prevalência entre gestantes e puérperas estava em torno de 9%, duas vezes maior que a média comum para a população geral do país. Apesar de ser um recorte pequeno, foi importante, porque entendemos como estava o panorama. Isso nos permitiu informar ao Ministério da Saúde de Moçambique que pode orientar suas políticas públicas”, explica Charles.
No Brasil, uma das questões avaliadas foi a prevalência da prematuridade no período da pandemia. A avaliação epidemiológica usou dados do Data-SUS (Sistema Único de Saúde), que tem uma base de dados robusta, o Sistema de Informação em Nascidos Vivos (Sinasc). Com auxílio da ciência de dados, foram avaliados cerca de 10 milhões de nascimentos no Brasil. “Com a pandemia, nós tivemos uma geração que nasceu com baixo peso, impactada pelos nascimentos prematuros”, acrescenta Pacagnella. Nesse período, houve um aumento em torno de 4% de nascimentos prematuros no Brasil, comparado a períodos anteriores. Entre a população indígena, entretanto, o aumento foi mais expressivo, situando-se na faixa de 50% a 60%, evidenciando disparidades regionais e raciais nas taxas de parto prematuro.
É sempre bom lembrar, diz Charles, que saúde sexual e reprodutiva é um direito humano fundamental, que contempla a disponibilidade de contraceptivos. O encerramento dos ambulatórios de planejamento familiar durante a pandemia fez com que as mulheres tivessem gravidezes não planejadas. Isso já havia acontecido na epidemia de H1N1, em 2009, no Brasil. “Não aprendemos com essas experiências e não olhamos para as mulheres. Isso não pode se repetir”, afirma Pacagnella.
Por fim, outro resultado impactante foi a evidência de que as gestantes e puérperas não vacinadas apresentaram maior risco de morte e internação em Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do que as vacinadas. Entre gestantes e puérperas, houve maior hesitação quanto à aceitação da dose de reforço da vacina de covid-19.