Vinhaça e dejetos de gado rendem biogás
Uso de esterco e resíduos da cana-de-açúcar pode mitigar problemas na cadeia de abastecimento durante a entressafra da indústria sucroalcooleira
Vinhaça e dejetos de gado rendem biogás

Uso de esterco e resíduos da cana-de-açúcar pode mitigar problemas na cadeia de abastecimento durante a entressafra da indústria sucroalcooleira

O Brasil possui um grande potencial para a produção de biogás, um tipo de energia limpa e renovável. No entanto, estima-se que apenas 1,5% dessa capacidade seja utilizada. Parte do biogás produzido no país vem da vinhaça, resíduo derivado da cana-de-açúcar após a produção do etanol. Nos períodos de entressafra da cana, entretanto, há dificuldades para manter a geração de energia. Levando em consideração esse problema, a pesquisa de doutorado em bioenergia de Ana Beatriz Aguiar, realizada na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, demonstra que os resíduos da pecuária, como o estrume, podem ser utilizados de forma integrada à vinhaça.
O Brasil, o segundo maior produtor de etanol e de carne bovina do mundo, de acordo com dados da Agência Internacional de Energia e da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne, precisa administrar melhor esses setores a fim de que seus resíduos gerem menos impacto ambiental. Mas a agropecuária, ainda que responsável por uma grande quantidade de dejetos, responde por apenas 19% da produção do biogás no país. Do setor líder nesse quesito, o de saneamento, se originam os resíduos sólidos e efluentes urbanos responsáveis por 63% do biogás produzido no território nacional, segundo dados da pesquisa Panorama do Biogás no Brasil 2023. “A pesquisa, então, une o viés energético, econômico e ambiental”, sintetiza Aguiar, que atualmente faz um pós-doutorado no Centro Paulista de Estudos em Biogás e Bioprodutos (CP2B).
Integração entre setores
No caso da indústria sucroalcooleira, há um potencial grande quanto ao biogás já que cada litro do combustível rende em média 10 litros de vinhaça. “Trata-se de um processo que gera mais resíduo do que produto, e hoje esse resíduo é jogado no cultivo da cana como um sistema de fertirrigação [aplicação de fertilizantes na água de irrigação], o que é benéfico para a planta”, explica Bruna Moraes, orientadora da tese e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) e do CP2B.
A decomposição da vinhaça no solo, no entanto, emite gases do efeito estufa. O problema diminui se houver a remoção da parte orgânica do substrato para a produção do biogás. “Esse processo de biodigestão não interfere negativamente na parte nutricional do substrato. Remove-se a matéria orgânica, e os outros componentes, como nitrogênio, potássio e fósforo, que são a principal justificativa para o usineiro jogar a vinhaça no solo, continua lá.” Assim, resume a orientadora, torna-se possível usar de forma mais eficiente a vinhaça.
Já em relação aos resíduos da pecuária, a autora decidiu focar sua tese nos dejetos dessa atividade. Aguiar destaca que o gado pode produzir entre 5% e 6% do seu peso corporal em esterco por dia. Uma vaca de 500 quilos, por exemplo, gera em média 25 quilos de dejetos. A tese procurou avaliar a codigestão anaeróbia (sem oxigênio) usando a vinhaça e o dejeto do gado, durante a safra da cana, além de buscar alternativas para a entressafra, quando a vinhaça não está disponível e a produção do biogás interrompe-se.
“A inserção do estrume busca otimizar esse período de entressafra porque realmente o que acontece hoje na maioria das usinas é a interrupção do processo. Então, se conseguirmos alinhar com outro substrato de outro setor da economia, podemos otimizar a produção durante esses meses sem impactar o consórcio microbiano [grupo de microrganismos que degradam a matéria orgânica] no biodigestor, pois haverá uma continuidade na alimentação do sistema. Essa integração é a maior inovação do projeto”, explica Aguiar.
Além do estrume, a pesquisadora realizou estudos com a chamada água sanguínea, a água residuária do abate bovino, como cossubstrato. “A linha vermelha [termo que se refere à canalização do sangue do abate] é um resíduo líquido com resquícios de sangue. Isso é interessante por ele ser líquido e por conseguir substituir a vinhaça nesse sentido. Trata-se de resíduos totalmente diferentes, mas, como precisamos de um resíduo líquido para compor a mistura, por exemplo, com o estrume, é interessante algum substrato com essa propriedade.”
Coorientadora da tese, Renata Rodriguez, professora da Universidade Federal de Alfenas (Unifal) e vice-coordenadora do CP2B, aponta as vantagens da integração entre os sistemas produtivos. “Precisamos de uma melhor gestão e de um melhor manejo dos resíduos porque muitas vezes, para um produtor, fica muito caro implantar um sistema de recuperação energética para o biogás. O trabalho propõe uma integração da pecuária com a indústria sucroalcooleira, tentando aproximar esses setores a fim de que o resíduo de um se torne matéria-prima do outro e que a energia produzida por um seja aproveitada pelo outro.”


Os resultados
A pesquisa de Aguiar utilizou dois tipos de biodigestores: o reator anaeróbico de leito estruturado (ASTBR, na sigla em inglês) e o reator semicontínuo de tanque agitado (s-CSTR, na sigla em inglês), que foram operados por mais de 400 dias.
Aguiar explica que cada equipamento apresenta características operacionais e potencialidades particulares. O reator s-CSTR possui maior robustez para operar com substratos que possuem concentrações mais elevadas de sólidos totais, como é o caso do estrume. Já o reator de leito fixo (ASTBR) demanda uma alimentação com menores teores de sólidos totais, sendo classificado como um reator de alta taxa, capaz de operar com elevadas cargas orgânicas volumétricas. “Isso significa que ele consegue tratar maiores volumes de substrato em um menor intervalo de tempo, quando comparado a outros modelos, como o reator do tipo CSTR”, afirma.
No caso do ASTBR, houve uma avaliação sobre a performance operacional com vinhaça e o dejeto bovino. No s-CSTR, foram feitas as simulações da produção de biogás em períodos de safra e entressafra, incorporando a água sanguínea
O melhor resultado na obtenção de metano deu-se com as misturas de vinhaça e esterco, que se mostrou mais eficiente do que a produção de biogás apenas com a vinhaça. No caso da codigestão com os dois resíduos, indica a pesquisadora, houve um aumento da produção de biogás e uma maior estabilidade no sistema.
Na simulação durante a entressafra, a pesquisadora atestou que a operação com água sanguínea e esterco permite dar continuidade ao processo de produção do biogás.
Desafios
A produção do biogás, algo viável no Brasil, contempla um dos desafios firmados pelo país na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2024 (COP29), realizada no Azerbaijão, no que diz respeito à redução da emissão líquida de gases de efeito estufa em até 67% até 2035. “Acreditamos que o Brasil poderia liderar essa corrida por uma substituição de matrizes, porém é importante pensar que quem deseja energia deseja segurança energética”, analisa Rodriguez. Dessa forma, é preciso “garantir que não teremos uma dependência de safra, por exemplo. Garantir que não vai haver uma falta de substrato por questões climáticas”.
Para um aumento expressivo na produção do biogás, a coorientadora recomenda investimentos altíssimos por parte do governo e do setor empresarial. Outro problema refere-se à capacitação e ao desenvolvimento tecnológicos para construir a infraestrutura de produção do biogás. No caso dos biodigestores utilizados por Aguiar, o desenvolvimento ficou a cargo da startup MLima Engenharia, incubada no Parque Científico e Tecnológico da Unicamp. Esses equipamentos foram montados pelo doutorando em planejamento de sistemas energéticos Brenno Lima, que precisou de biodigestores “de bancada” (equipamentos para a pesquisa em laboratório). No entanto, em escala industrial, no caso desses biodigestores, ainda há uma grande dependência em relação às tecnologias europeias.