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Marília de Andrade foi introduzida à dança pelo pai, Oswald de Andrade, e cresceu com o desejo de se tornar bailarina
Marília de Andrade foi introduzida à dança pelo pai, Oswald de Andrade, e cresceu com o desejo de se tornar bailarina

“Existem múltiplas formas de dançar e outras tantas por inventar”, definia Antonieta Marília Oswald de Andrade, fundadora do curso de graduação em Dança do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Ao longo de 79 anos (1945-2025), Marília antecipou debates de interesse da sociedade – desde questões de gênero na década de 1970 até pautas ambientais e indígenas nos anos 1980 – e esteve sempre à frente do seu tempo. Em sua atuação como bailarina, psicóloga, feminista, pesquisadora, professora, artista, cineasta, roteirista e tantas outras funções, ela teve uma vida tão múltipla e inventiva quanto a dança em sua própria definição.

Introduzida à dança pelo pai, Marília cresceu com o desejo de se tornar bailarina, sonho que permaneceu vivo mesmo após a morte de Oswald de Andrade, quando a filha tinha apenas nove anos. Na vida adulta, Marília seguiu o conselho da mãe, Maria Antonieta d’Alkmin, a musa e última esposa do escritor: deixou de lado a dança, à qual se dedicara desde os quatro anos, e ingressou em Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), na década de 1960. Duas décadas depois, após trilhar uma carreira brilhante na Psicologia Social, com PhD na Columbia University, ela retornou à dança de forma definitiva, tornando-se referência nos estudos sobre a bailarina Isadora Duncan e fundando o curso de graduação em Dança da Unicamp, em 1984, a convite do então reitor, José Aristodemo Pinotti. Era o segundo curso de Dança em uma universidade pública do país — o primeiro foi criado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) — e teve seu primeiro vestibular em 1985.

A graduação foi concebida com o propósito de valorizar a pesquisa, a criação e a formação de docentes na área de dança, integrando licenciatura e bacharelado.  A ideia era reunir todas as técnicas de dança – moderna, indiana, brasileira, clássica, neoclássica, flamengo etc. – para desenvolver uma ampla atuação, não restrita a uma única forma. O curso da Unicamp mantém sua proposta inicial e abre 25 vagas anuais para a formação de novos profissionais da dança. O IA também oferece mestrado e doutorado na área, em conjunto com o departamento de Artes Cênicas. “Muitos professores de dança das universidades federais Brasil afora passaram pela Unicamp, na graduação ou na pós, nestes 40 anos”, afirma a bailarina Mariana Baruco Machado Andraus, ex-aluna e orientanda de Marília de Andrade e hoje professora da Unicamp e dançarina da dança indiana Odissi.

O reconhecimento nunca veio de fato na forma como deveria ser, como ela merece
A professora Mariana Baruco Machado Andraus: “O reconhecimento nunca veio de fato na forma como deveria ser, como ela merece”

Pensamento moderno

“Nosso projeto pedagógico, que, em essência, foi desenvolvido por ela, é um projeto modernista, introduzindo as danças brasileiras. Vejo muita influência do pensamento moderno brasileiro. Claro que temos hoje toda uma revisão epistemológica, mas é inegável como Marília foi uma mulher de extrema força e muito à frente do seu tempo”, avalia Andraus. “Ela fazia muitas coisas e abriu muitos caminhos, mas muitas vezes não foi reconhecida. Acho que o reconhecimento nunca veio de fato na forma como deveria ser, como ela merece.”

Para a professora de dança Eveline Borges Itapura, o projeto do curso foi visionário, ousado e ambicioso, segundo afirmou em evento de comemoração dos 50 anos do IA, em 2021, período da pandemia de covid-19. “Ele [o curso] daria aos alunos um vasto leque teórico-cultural e uma prática intensa, que incluía pesquisa e criação. Isso situava a dança no mundo contemporâneo e na realidade sociocultural brasileira.”

Neste mesmo encontro, a professora de dança Regina Muller destacou o estudo das danças brasileiras. “A novidade da graduação em Dança da Unicamp era a ênfase na perspectiva antropológica aliada ao desenvolvimento, à criação e às técnicas voltadas para as danças brasileiras.” Para Inaicyra Falcão, também docente, graças a esse currículo pluricultural, que na época era bastante original, ela estava na Unicamp. “Por isso me coube, por isso cheguei aqui.”

Consolação Tavares, professora aposentada, lembrou que as condições físicas eram precárias, “mas havia uma proposta muito bonita e consistente, com importância grande em termos sociais e de educação”. A docente Holly Cravell disse que, aos poucos, o campo se abriu dentro do próprio curso, permitindo novas oportunidades.

Convite irrecusável

Marília de Andrade também participou da conferência virtual sobre a criação do curso em 2021 e lembrou que, em 1984, ela estava em Nova Iorque, desenvolvendo estudos sobre a norte-americana Isadora Duncan, uma das precursoras da dança moderna, quando recebeu a ligação do reitor Pinotti, que estava de passagem pela cidade americana. “Em menos de um ano, estávamos fazendo o vestibular para Dança.”

Na época, Marília já estava no IA e era a única pesquisadora da área da Dança no instituto. Veio para a Unicamp para trabalhar no Departamento de Música, no preparo corporal dos músicos. Antes disso, era docente de Metodologia na Pontifícia Universidade de Católica (PUC) de Campinas. Havia se mudado para Campinas para acompanhar seu marido, o professor emérito Antonio Augusto Arantes, do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Como a própria Marília dizia, ela era uma pessoa tão inventiva quanto seu pai para alcançar seus anseios. Foi propondo desenvolver os movimentos dos músicos que ela ingressou no IA para, anos depois, criar o curso de Dança no instituto, onde lecionou até 2015.

“A dança, para mim, é linguagem de gestos expressivos. Opção artística minha
Marília der Andrade: “Então, a dança é essencial, primordial na comunicação”

‘Dança é essencial’

“A dança, para mim, é linguagem de gestos expressivos. Opção artística minha. A coreografia é um poema cinético de gestos expressivos. Nesse sentido, trabalho com material expressivo, porque acho que o gesto é a linguagem fundamental, básica, do bebê. A palavra complementa, mas o que é forte na comunicação é o gesto. Então, a dança é essencial, primordial na comunicação. Pena que nos últimos 100 anos ela esteja entulhada”, disse Marília em entrevista gravada na Unicamp.

Segundo Andraus, Marília era uma orientadora doce e rigorosa ao mesmo tempo. “Ela era muito crítica. Isso é um pouco do contexto da dança, porque bailarino é muito autoexigente.” Andraus teve convívio muito próximo com a ex-orientadora, com quem também trabalhou no Estúdio XXI, espaço criado por Marília em 1998, no Sítio Santa Rita, em Joaquim Egídio (distrito rural de Campinas), onde Marília morava com o marido e as três filhas. “Marília tinha personalidade muito dela e perseguia questões muito próprias, entre elas o feminismo. Nesse convívio com ela, entendi o espírito pós-moderno que está presente no pensamento moderno da arte. Marília era, em si mesma, muito pós-moderna”, avalia Andraus.

Feminista e engajada

A ex-aluna fala da sua admiração por Marília de Andrade como mulher à frente do seu tempo. “O Estúdio XXI era um espaço maravilhoso. Ficava no alto do sítio e tinha paredes de vidro, com portas grandes”, descreve Andraus, que foi uma das bailarinas do espetáculo “Sobre a água”, criado por Marília para a inauguração do estúdio. “Ela era engajada nas pautas ambientais. Todo o argumento do projeto era ligado aos problemas climáticos. Foi um espetáculo muito bonito. Marília também teve uma empresa de produção cultural com o professor Arantes, que se chamava Andrade & Arantes, ambos aposentados, onde fiz atividades ligadas ao projeto Comunidade Solidária. Eu catalogava os trabalhos de comunidades como mulheres rendeiras, xilogravura, artistas do Nordeste. Tinha também o trabalho técnico de dança. Isso também era visionário, porque era ir além de fazer aulas e performar.”

Esse trabalho deu origem à pesquisa de mestrado de Andraus, orientado por Marília. Em 2022, a ex-aluna voltou a se aproximar da docente, com o projeto Rastros de 1922 e depois Rastros dos rastros de 1922, quando criou versão contemporânea de um dos espetáculos ligados à fundação do Departamento de Dança, Impressões Brasileiras. Também marcaram a fundação do curso os espetáculos Pedro e o Lobo e Sarará, que Marília dirigiu na época.

“A dança, para mim, é linguagem de gestos expressivos. Opção artística minha

Muitas histórias

Marília gostava de contar suas histórias e as do pai. Com frequência, lembrava de quando dançou na sala de sua casa para o compositor Heitor Villa-Lobos, a pedido do pai. Na época, era criança, mas já tinha aulas de dança com Carmem Brandão, levada pelo próprio Oswald de Andrade. Marília conta ter dito a Villa-Lobos que não gostava da música dele, porque era difícil dançá-la. No futuro, viria a dançar inúmeras vezes ao som das composições do maestro brasileiro.

Muitas de suas histórias ela contou no livro Maria Antonieta D’Alkmin e Oswald de Andrade: Marco Zero, lançado pela Companhia das Letras em 2003. Nele, Marília fala do romance dos pais e dos últimos 14 anos de vida de Oswald de Andrade, que faleceu em 1954, em uma fase em que estava pobre e esquecido pelo mercado editorial – inclusive pelas editoras de livros didáticos, segundo a própria Marília, que não conhecia a obra do pai enquanto estudante. Somente na vida adulta, ela conta, veio a conhecer seus livros, especialmente após matéria escrita por seu irmão Paulo Marcos, publicada em um jornal paulista, sobre a montagem de O Rei da Vela, de autoria do pai, pelo jovem José Celso Martinez Correa (1937-2023). Houve, então, um renascimento do interesse por tudo que Oswald havia escrito.

Pouco tempo depois, Marília perdeu seu irmão, que faleceu aos 20 anos em um acidente de carro. No ano seguinte, sua mãe se suicidou. “Acho que consegui superar os traumas. Fiz meu próprio trajeto. Criei defesas muito potentes. Espero não seguir a trajetória trágica da minha família”, disse Marília em entrevista. Oswald teve mais dois filhos, além de Marília e Paulo, que também já faleceram: José Oswald Antonio de Andrade, o Nonê, com a francesa Kamiá; e Rudá de Andrade, com a jornalista e escritora Patrícia Rehder Galvão (Pagu).

O escritor Lira Neto está em fase final de uma nova biografia de Oswald de Andrade, cujo arquivo está no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Cedae), da Unicamp. O título já foi definido: Oswald de Andrade – O Mau Selvagem. Conhecido por trazer histórias desconhecidas dos seus biografados, Neto promete trazer revelações do escritor, que também foi casado com Tarsila do Amaral.

Mulheres e indígenas

No mesmo caminho de seu pai, Marília de Andrade deixa um legado artístico inestimável, com muitas realizações em diversas áreas. Além de bailarina e acadêmica, ela foi também cineasta. Dirigiu três documentários: Balzaquianas, Terceira Idade e É Menino ou Menina?. Em todos, ela trata da questão da mulher na sociedade.

A pauta indígena também estava sob o radar da bailarina, que dançou Kuarup pela companhia de dança Stagium, espetáculo que teve a oportunidade de apresentar aos indígenas no Parque Indígena do Xingu. Na Unicamp, entre diversas montagens, realizou um projeto com o maestro e professor Benito Juarez, Pedro e o Lobo. A improvisação e a invenção que inspiravam suas coreografias na dança – “com gestos que expressam memórias” – foram sua marca em tudo que realizou.

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