Dentre as inúmeras questões em discussão sobre os possíveis impactos da inteligência artificial (IA) na humanidade, incluem-se aquelas da produção e do uso de conhecimento. As premiações do Nobel deste ano focaram avanços que têm relação direta com a IA e a ciência da computação. Aparentemente, nada mais se fará sem uso de ferramentas que, mesmo em um futuro próximo, sequer sabemos quais serão.
Não me lembro de uma inovação de disseminação e impacto tão velozes como foi o ChatGPT que, lançado no final de 2022, virou imediatamente uma referência global e fez disparar a oferta de outras ferramentas baseadas em Grandes Modelos de Linguagem. E, dizem os especialistas, estamos apenas no início de uma série de transformações cujo ineditismo dificulta ainda mais as previsões.
Criar coisas, como se sabe, depende de novo conhecimento que, como também sabemos, tem larga base na ciência e no desenvolvimento tecnológico. Às vezes, começa nos laboratórios, às vezes, na prática inventiva. Até hoje, as criações que mais impactaram a humanidade vieram da pesquisa científica e da capacidade empreendedora e visionária de alguns poucos.
Com a IA, algumas questões imediatas a serem enfrentadas no mundo da ciência e da tecnologia são a autoria e a reprodutibilidade das criações, dois fundamentos da governança da ciência e da tecnologia.
A quem devem ser atribuídas a autoria e a propriedade de algo criado por uma IA generativa? Como garantir a reprodutibilidade de um modelo que, a cada uso, aprende e muda e, portanto, já não é mais o mesmo?
Hoje, a resposta, como veremos abaixo, tem sido o pragmatismo, visto que criações e invenções autônomas, embora ainda não circulem entre nós, já estão ocorrendo nos laboratórios, como é o caso da criação por IA de novos antibióticos para combater bactérias resistentes. Quanto ao futuro (que parece nada distante), é impossível prever a resposta, até porque não sabemos o que poderá ser criado, inventado e a que distância ficará do evento original.
Sobre a questão da autoria, como discutem os autores do artigo “A Shift in the World of Science”, publicado no jornal New York Times (NYT) em 13 de outubro passado, talvez os cientistas produzam as ferramentas que posteriormente farão os avanços no conhecimento, avanços estes de que eles mesmos não serão mais autores ou inventores. No mundo discutido naquele artigo, os inventores de algoritmos e ferramentas capazes de aprender e criar não farão mais o trabalho revolucionário e poderão mesmo perder a atribuição de causalidade sobre o que será feito com a ferramenta que desenvolveram. Talvez sejam os precursores desse trabalho, como o personagem Eldon Tyrrel, da Tyrrel Corporation, do já clássico filme de ficção Blade Runner.
No artigo do NYT, os autores (que não são máquinas, creio) perguntam-se: “quem detém a descoberta? Onde termina a máquina e começa o humano?” Destacam que, hoje, a ciência já pode ser considerada, cada vez mais, um resultado de esforços coletivos, e que a ferramenta de IA usada pelos pesquisadores que ganharam o Nobel de Química deste ano foi treinada a partir de uma base que reunia o trabalho de mais de 30 mil biólogos. Também no caso citado há pouco, do desenvolvimento de antibióticos por IA, foi preciso reunir grande quantidade de dados (e de pesquisadores). Este, aliás, é um dos grandes desafios para a adoção de IA na pesquisa científica e tecnológica: a necessidade de grandes bases de dados de resultados e avanços de pesquisas que possam ser combinados no treinamento das ferramentas.
No campo da propriedade intelectual (PI), o assunto de como tratar invenções baseadas em IA talvez seja o ponto mais importante nos escritórios de patentes mundo afora. PI é assunto bastante institucionalizado, codificado e regido por normas nacionais e algumas internacionais avalizadas pelas nacionais. Os escritórios nacionais de patentes (como o Escritório Americano de Patentes – USPTO dos Estados Unidos, o Escritório Europeu e o Instituto Nacional da Propriedade Intelectural – INPI do Brasil), que também operam outras formas de proteção à PI, têm regras claras sobre o que pode e o que não pode ser caracterizado como invenção passível de proteção à propriedade imaterial.
Todos consideram que uma criação patenteável deve ser fruto da inventividade humana (além da originalidade e da aplicabilidade industrial), e nenhum (até a presente data) considera atribuir propriedade a uma entidade não-humana. O texto apresentado por Guerra et al. (2023)[1] mostra que nenhum dos grandes escritórios nacionais (Estados Unidos, União Europeia e China), além do Brasil, tinham, até o fim de 2023, regramentos específicos para criações decorrentes de IA.
Mas, como esse é assunto em constante e rápida evolução, em fevereiro de 2024, o USPTO publicou diretrizes para o patenteamento de invenções assistidas por IA. A principal discussão dessas diretrizes diz respeito à necessidade de haver uma pessoa natural para que a propriedade possa ser atribuída a um invento. Diz o texto:[2]
“Embora sistemas de IA e outras pessoas não naturais não possam ser listados como inventores em pedidos de patente ou patentes, o uso de um sistema de IA por uma pessoa natural não impede que essa pessoa natural se qualifique como inventor (ou inventores conjuntos) se ela tiver contribuído significativamente para a invenção reivindicada (…) Pedidos de patente e patentes de invenções assistidas por IA devem nomear a(s) pessoa(s) natural(is) que contribuíram significativamente para a invenção como inventor(es) ou inventores conjuntos.”
“(…) Da mesma forma, o Circuito Federal deixou claro que a concepção é o ponto fundamental da inventividade (…) Como a concepção é um ato realizado na mente, até o momento tem sido entendida como algo realizado apenas por pessoas naturais”.
Até o momento, como diz o texto, uma IA generativa que crie algo novo pelo seu próprio aprendizado e que esteja distante do seu criador não tem previsão legal diferente da atual, nem junto ao USPTO, nem a outros escritórios nacionais. [3]
O documento de diretrizes dos EUA, assim como de outros países, frente a tamanha incerteza, adota postura pragmática:
“O USPTO continuará presumindo que o(s) inventor(es) nomeado(s) em um pedido são os inventores reais. E os solicitantes continuarão responsáveis por cumprir suas obrigações existentes com o USPTO. Somente em casos raros, nos quais um examinador determinar (…) que um ou mais dos inventores nomeados podem não ter inventado o objeto reivindicado, questões de inventividade seriam levantadas durante a análise. Do ponto de vista de um examinador, não importará se a IA ou outro sistema de computador avançado realizou ações que poderiam se elevar ao nível de inventividade. O que importa, de acordo com as diretrizes, é se as ações de pelo menos um humano podem ser demonstradas como suficientes para atingir o nível de inventividade (…).”
Em outras palavras, é o que temos para hoje.
Na frase de um ex-Secretário de Defesa estadunidense, famosa por uma ação que não foi exatamente um exemplo de sucesso (a invasão do Iraque no início dos anos 2000), “há coisas que sabemos que não sabemos, e outras que não sabemos que não sabemos”.
O futuro da IA está nas duas sentenças, mas se enquadra mais na segunda. Criar coisas que sequer sabemos que podem existir é, talvez, o maior desconhecimento que temos de enfrentar com a emergência da IA na ciência e na tecnologia.
É o que temos para amanhã.
Observação: Agradeço ao professor Anderson de Rezende Rocha do Instituto de Computação (IC) da Unicamp, que sugeriu ajustes e tópicos importantes para o texto. Eventuais erros e imprecisões que persistam são de minha única responsabilidade.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] Ver páginas 2123 a 2132 de: https://www.altecasociacion.org/_files/ugd/9d974b_5fa00e9cdfd64130ae3042efe321406f.pdf
[2] Tradução feita no ChatGPT e revisada por este autor.
[3] Outro documento de diretrizes é o do Escritório de PI de Singapura, no qual há discussão a partir de situações concretas que apontam para potenciais mudanças no marco regulatório e de jurisprudência, embora o próprio documento não seja vinculatório nem substitua a legislação vigente naquele país.