Novela da lista de leitura obrigatória do Vestibular da Unicamp sintetiza a primeira fase do escritor
“Difícil escolher os que merecem mais destaque numa vasta galeria do mais alto nível”, escreve o crítico literário, escritor e professor da Unicamp Paulo Franchetti sobre a escolha do pouco conhecido livro Casa Velha, de Machado de Assis (1839-1908), para a relação de leitura obrigatória dos Vestibulares 2024, 2025 e 2026 da Unicamp. A dificuldade da escolha acontece por conta da grande produção de obras-primas pelo mesmo autor, explica Franchetti em nota publicada na nova edição que acaba de ser lançada pela Editora da Unicamp. O que torna a história de um amor impossível – narrada em Casa Velha – uma leitura que vale ser indicada – não apenas a vestibulandos – é que ela resume toda a primeira fase do realismo romântico de Machado de Assis.
Em formato pequeno (10,5 cm x 18 cm) e com a inclusão de QR codes para direcionar o leitor a ilustrações a serem vistas pelo celular, a edição recém-publicada conta com apresentação e notas bibliográficas de Franchetti, professor titular aposentado do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).
“A importância da escolha dessa novela para o Vestibular é que ela traz todas as questões dos primeiros romances do Machado de Assis. Ela pode ser uma espécie de súmula que ajuda a entender o realismo romântico”, diz o professor.
Publicada originalmente em 25 episódios, entre 1885 e 1886, na revista A Estação, a novela traz uma visão positiva do amor-próprio como defesa diante das barreiras sociais vivenciadas por personagens femininas. Lalau é a heroína em Casa Velha, a moça inteligente e cheia de vida que, impedida de viver seu grande amor, nem por isso se humilha. “Ela acaba se afastan- do dos amados e renunciando ao amor para garantir sua inteireza moral. Como outras personagens de romances da primeira fase, ela é uma espécie de exemplo para a educação das leitoras.”
Machado de Assis atravessou duas fases, descreve o professor. “Na pri- meira, ele vai se afirmando como escritor. Ali há sempre um princípio edificante, e creio que isso tem a ver com os veículos em que ele publicava, textos destinados majoritariamente a senhoras, como A Estação, ou de perfil católico, como O Cruzeiro. Na revista onde saiu Casa Velha, o texto surgia ao lado de partituras musicais, notícias sobre moda e sugestões de figurinos. Ou até mesmo entrecortado por elas”, diz Franchetti.
Entre os romances de Machado que se enquadram no realismo romântico estão Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). No mesmo ano deste último lançamento, chegou ao Brasil O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Para Franchetti, Machado de Assis foi muito afetado pelo sucesso estrondoso do escritor português
O impacto que essa obra de Eça de Queirós causou em Machado de Assis serviu de tema para um capítulo de um livro de Franchetti: O Primo Basílio e a batalha do Realismo no Brasil. Em sua pesquisa, o professor leu praticamente todos os jornais da época. “Saíam pequenas notas até dois anos depois. Machado reagiu mal. Escreveu no jornal católico que o livro era imoral e que tinha narrativa com muitas minúcias, contrário a tudo que ele vinha fazendo.”
Entretanto, O Primo Basílio virou mania, descobriu Franchetti. O livro não fala isto textualmente, mas sugere que Basílio se ajoelhou e que Luiza (a personagem feminina) vivenciou uma experiência diferente. “Ele sai dizendo para si mesmo que lhe tinha ensinado uma sensação nova e que, portanto, ela já lhe pertencia inteiramente. No Rio de Janeiro só se falava nessa sensação, que era a propiciada pelo sexo oral. Faziam-se muitas piadas com a expressão ‘sensação nova’”, diz o professor.
O Primo Basílio, por fim, arrebatou grande parte do público de Iaiá Garcia. “Foi uma infelicidade. De repente, o projeto de Machado, aquilo que ele tão lentamente construíra, parecia falido.” No mesmo ano de 1878, Machado subiu a serra por motivos de saúde. “Ele era epiléptico, mas não viajou por isso. Segundo alguns biógrafos, Machado teve um episódio de cegueira, que o obrigou a ditar o próximo romance para a mulher. Eu acho isso pouco razoável. O que ele teve foi uma crise literária”, acredita Franchetti.
Machado viajou para a serra e lá abandonou o romantismo edificante, afirma o professor. Escreveu então Memórias Póstumas de Brás Cubas, um romance em que o adultério aparece desacompanhado da culpa. A história é contada sob o ponto de vista de um homem sem caráter, personagem despudorado que pode dizer e fazer o que quiser, porque está morto e ninguém vai censurá-lo. “Machado expõe toda a miséria moral da elite branca dominante, racista, machista, com todos os seus vícios de classe. Essa foi uma grande sacada. Em vez de um negro ou um subalterno denunciar essas coisas, ele se pôs na pele de um membro da classe senhorial para expor as suas mazelas morais”, comenta Franchetti.
“Ele precisava se reinventar”, completa, “porque o público dele estava sendo cooptado pelo romance de Eça. A resposta de Machado, a sua solução para o impasse foi genial. Memórias Póstumas de Brás Cubas é um dos maiores romances da literatura brasileira, um dos grandes da literatura mundial”. Para Franchetti, Machado tinha uma razão pessoal para se opor ao naturalismo na literatura e à sua base conceitual, o determinismo. Ele era, afinal, um escritor negro, que viveu a maior parte da sua vida em um país escravocrata e que já estava com quase 50 anos quando da abolição da escravatura. Não obstante a sua origem, Machado transformou-se em um dos mais respeitados escritores brasileiros e um líder da sua geração, sendo o principal vulto na fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual tornou-se presidente perpétuo.
A partir de 1880, Machado incorpora no romance a liberdade que já experimentava nas crônicas e inicia sua segunda fase, com Memórias Póstumas, seguido dos romances Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Os traços marcantes dessa fase são a ironia e a reflexão sobre a construção narrativa. “Ele tratou de reconquistar esse público. Machado estava sempre muito atento ao que o público queria.”
Franchetti descreve esse contexto na sua apresentação de Casa Velha para o leitor entender que, apesar de ter sido publicada em fascículos entre 1885 e 1886, ou seja, posteriormente à publicação de O Primo Basílio e de Memórias Póstumas de Brás Cubas, a novela certamente foi escrita antes da segunda fase, porque se enquadra no realismo romântico machadiano.
“Essa novela é claramente anterior à virada de Machado, em 1880. A ideia que eu tenho é que ele pegou um texto velho que tinha guardado e o entregou para o editor, porque tinha que publicar sempre algo”, conclui Franchetti, que, não obstante, identifica na história de Lalau, contada por um padre, o genial estilo machadiano.