Tese identificou 828 casos de homicídios múltiplos em São Paulo e na região metropolitana entre 1980 e 2020
Unhas das mãos arrancadas, cortes e seis tiros pelo corpo. Assim foi entregue o cadáver do encanador Willians Santana, de 36 anos, à sua família, em agosto de 2023. Santana foi uma das 22 pessoas mortas em uma operação realizada por policiais em Guarujá, litoral sul paulista.
Homicídios múltiplos como esse não são exceção e possuem um modus operandi em comum, segundo a cientista social Camila Vedovello: ocorrem majoritariamente em periferias, com homens negros e jovens compondo o grupo mais afetado. O tema foi objeto da tese de doutorado de Vedovello, defendida recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, na qual a pesquisadora mapeou 828 chacinas – episódios em que há o homicídio de três ou mais pessoas – na cidade de São Paulo e região metropolitana entre 1980 e 2020. A pesquisa foi vencedora do III Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog 2023 (Pradh), na categoria Ciências Humanas, Sociais e Econômicas.
Para a pesquisadora, esses números expressam o horror da morte experimentado por determinados grupos populacionais, em um estado de exceção permanente. Conforme Vedovello, “por mais que as instituições descrevam isso como um ‘ponto fora da curva’, são recorrentes as mortes das pessoas periféricas, seja por execuções ou por chacinas, se a gente olha para os dados. É o que encontramos dentro da política de segurança pública. As chacinas são previstas”.
A cientista social também critica o fato de essas mortes ocorrerem em um período histórico, em teoria, democrático. “Temos algo que é recorrente, cotidiano, e que não deveria ser. Estamos em uma democracia, mas as mortes continuam acontecendo de forma muito cruel nos bairros periféricos. Então, as chacinas fazem parte dessa democracia, infelizmente.”
Segundo a pesquisadora, quando essas chacinas são executadas por agentes de segurança pública, é comum esses agentes passarem pelo local antes do crime, com carros da Polícia Militar ou da Força Tática, evidenciando uma ação premeditada e calculada, em que todo o ambiente para a chacina é criado. Vedovello explica que é comum que as chacinas ocorram em locais de socialização das periferias e à noite. “[Ocorrem] na rua, no bar, na padaria, na frente da pizzaria, nos locais onde se aglomeram pessoas nas periferias após 20h, 21h, ou seja, no período noturno, em grande parte. Os executores podem estar ligados a grupos criminosos. E há um pequeno grau de elucidação dos casos, principalmente quando há a participação desses agentes.”
A chacina da Pavilhão Nove
Para a tese, intitulada “Quem sangra na fábrica de cadáveres? As chacinas em São Paulo e RMSP e a chacina da torcida organizada Pavilhão Nove”, Vedovello entrevistou amigos e familiares dos mortos, investigadores, jornalistas e líderes de movimentos sociais. No trabalho, além de ter realizado um balanço das chacinas, analisou mais detalhadamente o caso envolvendo integrantes da torcida corinthiana Pavilhão Nove. Para isso, acompanhou também o júri responsável por julgar esse caso.
A torcida Pavilhão Nove, explica a autora, tem esse nome em referência a um time de futebol do Carandiru, que chegou a ser o maior presídio da América Latina, com 8 mil pessoas presas. O surgimento da torcida deu-se antes do massacre de 1992, quando a polícia executou 111 detentos dentro do presídio. Contudo, segundo um dos integrantes da Pavilhão Nove, aponta a pesquisadora, a torcida também representa as pessoas que já estiveram encarceradas ou que estão no cárcere, bem como os moradores das periferias que torcem pelo Corinthians.
O crime contra os membros da Pavilhão Nove ocorreu em 2015. Oito corinthianos foram assassinados a tiros. Um ex-policial militar acabou condenado. “Apenas um policial que já havia sido expulso da corporação foi a júri. Ele pegou 149 anos de prisão, mas não se esclareceu quem foram os outros responsáveis pelas mortes.”
A pesquisadora também analisou a atuação das famílias e dos movimentos sociais a respeito das denúncias sobre as chacinas e quanto à cobrança por justiça. “Os movimentos sociais têm extrema importância quando se trata de expor esse horror, fazendo denúncias e mostrando o quanto é importante o direito à vida. Mas nem todos os familiares entram nessa luta. É muito cruel querer que uma pessoa em luto passe sua vida em uma disputa política resultante de um acontecimento como esse.”
Um dos movimentos com o qual a autora da tese manteve contato foi o Mães de Maio, uma organização criada em 2006 por mães e parentes de jovens mortos por agentes de segurança do Estado brasileiro. Naquele ano, cerca de 600 jovens foram assassinados em uma semana no país. “As Mães de Maio fazem uma coisa muito interessante, que é abraçar e dar apoio a essas pessoas. Mas não exigem que elas vão à luta. Elas falam sobre morte, mas sublinhando o direito à vida.”
A pesquisadora, no entanto, compreende que nem sempre há força para uma luta política, pois se instauram sentimentos de luto e de dor que são, além de individuais, coletivos. “No caso da chacina da torcida, os integrantes e familiares realizaram uma série de ações de protesto. Mas chegou um ponto em que os familiares foram ficando muito cansados e a torcida começou a entender isso, porque as pessoas precisam viver o luto e viver para além do luto”, analisa.
Criminalização e extermínio
Apesar de informações sobre raça não constarem dos boletins de ocorrência e das notícias de jornal, Vedovello chegou à conclusão de que, nas áreas onde os crimes ocorreram, há uma predominância de negros. O racismo, segundo a cientista social, é um elemento fundamental para entender por que essas chacinas ocorrem e por que ainda contam com o apoio de parte expressiva da população. “A principal questão que temos no Brasil para pensar isso é um racismo muito refinado, que criminaliza grupos sociais e territórios inteiros e que dá aval para que essas ações de extermínio ocorram. No Brasil, encarceram-se pessoas negras com grande frequência e, nas prisões, elas podem morrer. Na rua, elas podem morrer.”
A fim de melhorar esse cenário de violência, segundo a pesquisadora, outro ponto a ser levado em conta é a maneira como as polícias operam. “As polícias são constituídas não para a segurança pública, mas para o controle social. A forma como elas operam e a forma como se autoriza o assassinato de determinadas pessoas, tudo isso com a conivência da sociedade, fazem com que se normalizem as chacinas”, diz.