Ativista cultural, intelectual e grande defensor da expressão regional amazonense. Essas são as primeiras palavras do professor Francisco Foot Hardman, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, ao descrever o manauara Márcio Souza – romancista, dramaturgo, roteirista, cineasta, jornalista e cientista social que faleceu em Manaus, aos 78 anos, no último dia 12 de agosto.
Escritor de projeção nacional, Souza é autor de 17 livros de diferentes gêneros – entre eles o romance Mad Maria, que inspirou a série homônima produzida pela Globo; e Lealdade, segundo colocado no Prêmio Jabuti de 1998 na categoria Romance –, além de 12 peças teatrais e diversos contos. Também atuou no cinema como diretor e roteirista, foi presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e esteve à frente da Marco Zero, editora criada por ele mesmo.
“Márcio Souza tem uma obra de muito valor, que é vasta e bastante variada. Ele se preocupou com diferentes manifestações culturais. É um escritor de muita importância para a literatura brasileira e para a literatura amazonense”, diz Foot, lembrando que Souza figura entre os últimos escritores brasileiros nascidos na década de 1940. A geração seguinte, nascida nos anos 1950, tem nomes como o também manauara Milton Hatoum.
Foot conheceu Souza pessoalmente por intermédio de Hatoum, à época, início dos anos 1990, pró-reitor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Nessa ocasião, Hatoum, que tinha acabado de lançar o Relato de um certo Oriente (1989), convidou Foot Hardman para uma visita a Manaus e em seguida para ser consultor de projeto do Museu da Amazônia.
Em dezembro de 2005, o Instituto Moreira Salles (IMS) publicou um especial sobre Souza, a edição 19 dos Cadernos de Literatura Brasileira (publicados entre 1996 e 2012). Foot foi convidado a participar e escreveu o capítulo “Revolta – Na planície do esquecimento: A grande falha amazônica”, no qual destacou que “o próprio autor [Souza] buscou sempre assinalar sua qualidade de voz expressiva e representativa, na cena artística, literária ou genericamente intelectual, daquela região [a região amazônica]”. E cita como exemplo o compêndio lançado por Souza Breve História da Amazônia.
“Tive contato direto com ele [Souza] novamente na ocasião desse ensaio. Ele mandou informações sobre algumas obras que eu não conhecia. Sou muito ciumento dessa edição. Os Cadernos Literários eram edições primorosas, em papel couchet, com fotografias e manuscritos, tudo muito bem editado”, diz o docente.
História e ficção
No texto, o professor fala sobre uma questão recorrente na obra de Souza: uma Amazônia idealizada pelas pessoas que não vivem lá, consequência da própria história brasileira, que começou já com essa região apartada do restante do país. Portugal criou então duas administrações distintas: o Vice-Reino do Brasil e o Grão-Pará. Essa segunda área administrativa englobava o Amazonas, o Pará, o Maranhão e o Rio Negro. Até a Independência, em 1822, não existia a Amazônia. A região era identificada como Grão-Pará. Dom Pedro I unificou as colônias, mas somente em 1835 o Grão-Pará deixou de existir oficialmente.
Souza costumava repetir em suas palestras que as outras regiões do país não sabiam nada da história da Amazônia. “Isso às vezes gerava uma certa antipatia das pessoas com relação a ele”, diz Foot.
Segundo o escritor, havia uma imagem fantasiosa sobre a Amazônia, o que reforçava a ideia de um Brasil dividido e paradoxal. “Ele tinha uma visão de que a Amazônia ficou apartada, separada do restante da nação”, diz o professor. Márcio Souza era convidado a fazer palestras em todo o Brasil e também fora dele, como nas universidades de Sorbonne (França), Heldelberg (Alemanha), Coimbra (Portugal), Harvard (Estados Unidos), Santiago de Compostela (Espanha) e Universidade Livre de Berlin (Alemanha).
De acordo com Foot, Souza valorizava enormemente a ideia da manifestação regional, sem incorrer no regionalismo. No livro A Expressão Amazonense, o autor relata sua preocupação com as expressões culturais vinculadas aos povos originários e fala ainda do processo colonial. “Ele foi fiel ao que acreditava e fazia muito bem a relação entre história e cultura”, define Foot, autor do livro Trem-Fantasma: A ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva (1988), com a mesma temática do romance ficcional Mad Maria, de Souza.
“São duas entradas diferentes, porque ele escreveu o romance a partir do que conhecia da história da ferrovia e criou uma ficção. Eu pesquisei em uma linha mais historiográfica”, explica o professor. Em seu livro, Foot Hardman conta como a ideia da ferrovia nasceu de projetos norte-americanos surgidos a partir de 1868. A empreitada, porém, iniciou-se apenas no começo do século XX (em 1907).
“O grande pretexto para a construção era o transporte da borracha, que justificava a ferrovia de 400 quilômetros em plena selva, porque essa é uma região com muita cachoeira e corredeira e não há navegabilidade fluvial regular. Quando a obra terminou, os ingleses já tinham levado a borracha para o Sudeste Asiático, para a Malásia, e o preço da borracha já tinha caído no mercado internacional. A ferrovia se tornou deficitária e ninguém mais a queria. Em 1930, ela foi nacionalizada.”
A obra
As obras de Souza de que o professor mais gosta fazem referência ao período da ditadura civil-militar no Brasil. “Gosto muito do romance Operação Silêncio, ambientado em um clima de repressão. O título é bem feliz. Era um talento dele pegar fatos históricos e romancear. Ele fazia isso muito bem”, diz o professor. Souza era um ativista de esquerda e chegou a ser preso durante a ditadura.
Ainda sobre a extensa obra do escritor amazonense, o professor lembra dos curtas-metragens e do longa-metragem A Selva, de 1972, com 75 minutos, inspirado na obra do escritor português José Maria Ferreira de Castro. Para o teatro, Souza escreveu obras reconhecidas pela predominância dos temas indígenas. O livro de contos A Caligrafia de Deus, cujo prefácio Foot escreveu, é também um dos mais conhecidos do autor.
Entre os romances, além de Mad Maria e Lealdade, há ainda Galvez, Imperador do Acre, que conta a história da guerra ocorrida naquele Estado. A veia cômica de Souza aparece no livro sobre Santos Dumont, O brasileiro voador, uma ficção na qual ele elabora uma espécie de caricatura do personagem. Seu humor ácido aparece igualmente em O Fim do Terceiro Mundo.
Em Manaus, Souza é muito reconhecido pelo público em geral, como uma celebridade. Nacionalmente, encontrou reconhecimento entre as décadas de 1960 e 1980. “Depois de um grande sucesso nacional, quando circulava na mídia e dava muitas entrevistas, ele passou a ser pouco conhecido, especialmente pelas novas gerações. Mas não é o único [a experimentar isso]. Temos muitos escritores importantes sobre os quais se fala muito pouco. Posso citar alguns, como João Gilberto Noll, que ganhou prêmios internacionais, ou Caio Fernando Abreu e Sérgio Sant’Anna. São autores que considero muito importantes, mas sobre os quais quase não se fala mais.”
Cultura acelerada
Para Foot Hardman, esse é um efeito de um processo geral de redefinição de valores culturais. “Estamos em uma cultura muito apressada e acelerada. A cultura digital contribui muito para isso. As pessoas não se dão conta, mas, quando veem, o mundo delas está circunscrito a um celular. Uma imagem que entra e, poucos segundos depois, já é substituída por outra. Nós acabamos entrando nesse movimento. Isso tem consequências negativas.”
O professor fez parte da segunda turma da graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, quando concluiu o bacharelado em ciências humanas, um curso que não existe mais. “No terceiro ano, a pessoa optava por economia, ciências sociais ou linguística”, lembra o professor do IEL. “Hoje os alunos são muito impacientes. Eles querem fórmulas que resolvam tudo. Esse é um problema mundial.”
Acesse ao vídeo da participação de Márcio Souza, em uma edição do programa Fóruns Permanentes da Unicamp, em 2011.