História (re)contada em azulejos
Pesquisadora analisa a tipologia e a simbologia de painéis em cinco monumentos paulistas
No início dos anos 1920, Washington Luís, então presidente do Estado de São Paulo, encomendou a construção de uma série de monumentos para comemorar o primeiro centenário da independência do Brasil. Dentre as edificações remanescentes, cinco possuem painéis de azulejo, com a representação de cenas históricas. Essas obras constituíram o foco da pesquisa de doutorado realizada por Renata P. C. Monezzi no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e apoio do banco Santander. A tese “Azulejos na arquitetura paulista: das artes decorativas às artes industriais” destaca os símbolos usados para forjar uma história, expondo narrativas conflitantes.
O estudo integrou a linha de pesquisa Cultura Visual, História Intelectual e Patrimônios, uma das frentes de investigação do Programa de Pós-Graduação em Política, Memória e Cidades do IFCH. Sob orientação da historiadora Cristina Meneguello, professora do Departamento de História do instituto, Monezzi analisou a tipologia e a simbologia dos azulejos e dos painéis pintados no Largo da Memória (no centro da cidade de São Paulo) e em outras quatro edificações distribuídas por uma antiga estrada localizada entre a capital e o litoral sul do Estado, a Rodovia Caminho do Mar. Cada monumento possui um nome: Cruzeiro Quinhentista, Pouso Paranapiacaba, Marco de Lorena e Rancho da Maioridade.
“Uma vez que as margens do Rio Ipiranga entraram para a história oficial como o local onde dom Pedro I anunciou a independência do Brasil, em 1822, São Paulo se impôs como berço da nova nação e passou a encampar uma série de iniciativas para comemorar o centenário do marco. Decidiu-se, então, contar essa história no espaço público, utilizando figuras, com base na ideia de que ver uma imagem é mais forte do que ler [um relato]”, resume Meneguello. Para projetar o conjunto de monumentos, foi escolhido Victor Dubugras, arquiteto francês radicado no Brasil. Já o artista plástico José Wasth Rodrigues desenhou as cenas retratadas nos painéis e as estampas dos azulejos encontrados nas composições gráficas vistas na margem e no verso das obras.
A pesquisa teve início com um estudo sobre a história da arquitetura brasileira e do uso das artes decorativas (incluindo louças e azulejos) por diferentes estilos. E incluiu uma análise do impacto da evolução técnica e teórica na área no período compreendido entre meados do século XIX e o início dos anos 1900, trazendo uma “significativa contribuição para a história da azulejaria no Brasil, da produção ao seu emprego nos espaços público e privado”, observa Meneguello.
Monezzi notou que o uso da azulejaria no projeto ocorreu de maneira a integrá-la aos monumentos, sendo pensado como algo essencial para a transmissão dos ideais defendidos na época. “Trata-se de uma arquitetura potente, pois inserida em uma ideia de produção, progresso e soberania de São Paulo, que agregava elementos da nossa história: os azulejos.”
Parte do seu trabalho ocorreu na Universidade Ca’ Foscari (Itália), onde a hoje doutora em história conduziu uma investigação sobre as origens e as influências dos ceramistas contratados pela Fábrica Santa Catharina, a primeira do Brasil de louças finas – e local da queima dos azulejos estudados. Em São Paulo, Monezzi analisou documentos, objetos, jornais, revistas e catálogos de exposições industriais, em acervos de museus, bibliotecas e arquivos. Com base no que coletou, conduziu uma análise comparativa entre os registros do passado, as estampas dos azulejos e as cenas pintadas nos painéis atuais.
Os azulejos dos monumentos representaram uma inovação completa, pois, até aquele momento, as estampas das louças se limitavam a dois motivos, florais e geométricos, seguindo o padrão europeu. No doutorado, Monezzi encontrou imagens não apenas incomuns, mas que projetavam uma versão peculiar da história de São Paulo. “O brasão das armas do Estado foi usado para criar um dos padrões desenhados nos azulejos. Algo inédito.” A flor do café e o bandeirante – personificação do paulista bem nascido e educado, porém destemido e despojado – também constam de uma narrativa criada para exaltar São Paulo como protagonista da formação da nação e motor do progresso. Nas pinturas dos painéis, essa história aparece em cenas como a de um encontro pacífico entre o padre Anchieta e indígenas ou ainda a de um tenso embate entre os bandeirantes e os povos originários.
Enquanto conduzia sua pesquisa, a arquiteta notou que algumas das pinturas atuais não correspondiam aos desenhos de Rodrigues. Ao buscar por fotografias do período para fazer uma acareação, Monezzi encontrou imagens dos anos 1920 impressas em exemplares d’A Revista Estrada de Rodagem e preservadas no acervo da família Dubugras. Segundo suspeitava, as modificações feitas, sobretudo nas décadas de 1960 e 1980, não se limitaram a alterar o traço original, mas haviam transformado algumas cenas por completo, adicionando personagens que não existiam antes ou apagando partes inteiras.
Duas das mudanças mais expressivas encontram-se em Cubatão – no Rancho da Maioridade e no Cruzeiro Quinhentista. No primeiro, Rodrigues havia pintado Dom Pedro II com seu exército imperial, em uma cena representativa do momento da passagem do imperador pela estrada, reformada poucos anos após o golpe da maioridade – episódio que antecipou sua coroação como imperador.
“Embora as revistas da época registrassem que era ele quem estava desenhado, no painel que eu olhava, Dom Pedro II não existia. O desenho de José Wasth Rodrigues havia desaparecido. O exército imperial também. Todos viraram bandeirantes”, diz a pesquisadora. Ao apagar o monarca e valorizar os sertanejos, essa modificação produziu uma nova e diferente narrativa, concluiu.
Ainda mais expressiva mostrou-se a transformação no Cruzeiro Quinhentista. Em seus três painéis, Monezzi observou diferenças significativas em relação à construção dos anos 1920, sobretudo no que diz respeito à superioridade dos bandeirantes em relação aos indígenas.
“Consegue-se ver o poder. Na representação original, havia um bandeirante caído, morrendo. Agora, há um que está carregando uma arma. São alterações que mostram ter havido uma mudança de interpretação [sobre os fatos históricos] ao longo do tempo”, diz a pesquisadora, refletindo sobre o significado da construção de uma narrativa histórica. “Os edifícios foram feitos no início do século XX para representar uma ideia de passado. Seus signos e elementos permitem fazer uma leitura atual sobre o que é essa história e esse herói, sobre o contexto em que foram produzidos e sobre quais ideias desejava-se preservar.”
A descoberta surpreendeu até mesmo especialistas do Museu Paulista que trabalhavam com o acervo consultado, revela Meneguello. A professora do IFCH pondera que, passados 60 anos desde o centenário da independência, questões fundamentais à época do lançamento das obras perderam importância, o que favoreceu o surgimento de narrativas conflitantes.
“A história tem essa atualidade de mostrar que algo pode ser repetido tantas vezes que parece virar verdade, quando, na realidade, pode não ter sido sempre dessa forma. A Renata foi achar as fotos que confirmaram alterações das figuras no lugar mais improvável, a revista da Diretoria de Estradas de Rodagem. Essa é a força da pesquisa feita nas fontes primárias. Seu trabalho mostrou que uma história tida como sedimentada foi, na realidade, recontada.”