A utopia oferecida em lotes
Tese analisa empreendimentos imobiliários da Cia. City em três municípios do interior de São Paulo
A expansão da Companhia City para além da capital paulista marcou a disseminação de um modelo único de negócio. Uma tese defendida na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (Fecfau) da Unicamp se dedicou a entender esse movimento de interiorização da empresa loteadora – responsável por bairros icônicos de São Paulo entre as décadas de 1910 e 1930, como o Jardim América e o Pacaembu. A pesquisa analisa, em especial, os empreendimentos realizados em Piracicaba, Ribeirão Preto e Barretos durante a década de 1970.
Fundada em 1911, com capitais ingleses e franceses, a Companhia City, ou Cia. City, é responsável por trazer para São Paulo o conceito de cidade-jardim, que se espalhou globalmente, um conceito concebido pelo inglês Ebenezer Howard no século XIX. “Trata-se do ideário de um espaço que mescla as vantagens da cidade com as do campo. Uma ideia utópica que acabou sendo cooptada por empresas interessadas em estruturar novos bairros e que começaram a implantar subúrbios na área de transição entre o urbano e o rural”, explica o professor orientador da pesquisa, Sidney Piochi Bernardini.
O modelo da cidade-jardim, ligado ao traçado “pinturesco”, traduz-se em projetos que respeitam a topografia do terreno e imitam as formas da natureza. E também privilegia as áreas verdes, propondo lotes maiores, com construções espaçadas entre si. Há uma preocupação com a tranquilidade e o silêncio, apartando as zonas residenciais das comerciais e proibindo a realização de certas atividades. Isso, no entanto, não significa um isolamento espacial, visto que “a companhia conseguiu incorporar os empreendimentos à cidade, em áreas bem centrais, diferente dos condomínios fechados que vieram depois. Inclusive isso é enfatizado na divulgação da empresa”, esclarece a autora da tese, Ana Carolina Capelozza Mano.
Para os pesquisadores, é interessante perceber que empresas como a Cia. City moldaram parte dos espaços urbanos, atuando como “concretizadora espacial para que a elite pudesse viver nos melhores pedaços da cidade – nem afastados, nem enclausurados, mas integrados”, afirma Bernardini. Um diferencial da companhia era a entrega de toda a infraestrutura pronta – em termos de eletricidade, saneamento, pavimentação, arborização etc. –, o que revela um padrão de qualidade espontâneo, pois tais medidas não constituíam uma exigência legal à época.
A companhia propunha, inclusive, parâmetros urbanísticos mais rígidos do que os previstos em lei – por exemplo, em relação ao recuo das casas, à taxa de ocupação e à altura do muro frontal. “A City se sobrepõe ao planejamento municipal quando registra suas próprias normas em cartório. Ou seja, mesmo se a legislação mudar, as regras são vitalícias – tanto que, até hoje, bairros como o Pacaembu estão intocados”, destaca Bernardini. Essa configura uma estratégia de negócio pioneira mantida durante a expansão da empresa rumo ao interior, atraindo compradores e inspirando iniciativas similares, segundo Mano.
Rumo ao interior
A tese ressalta que o período do “milagre econômico” brasileiro provou-se fértil para o desenvolvimento de empreendimentos focados em um público de alto poder aquisitivo. A primeira incursão da empresa fora da capital ocorreu ainda na região metropolitana de São Paulo, na década de 1960. Em seguida, a City migrou para cidades paulistas do eixo da Rodovia Bandeirantes – inaugurada no início da década de 1970, no contexto de uma reestruturação da capital a fim de integrá-la economicamente com o interior do Estado –, chegando até as três localidades analisadas. Nesse mesmo período, a companhia também atuou em municípios de Goiás, Santa Catarina e Minas Gerais.
A pesquisa identificou que o lançamento dos loteamentos em Piracicaba (1972), Ribeirão Preto (1977) e Barretos (1980) foi recebido com empolgação, resultando em um sucesso de vendas. Parte desse êxito pode ser atribuída a uma estreita relação fomentada com o poder público, imobiliárias e a mídia – o que Mano denominou de “rito” de entrada da empresa em cada nova localidade. “Primeiro, ela trabalhava a divulgação dos marcos arquitetônicos desenvolvidos em São Paulo e depois anunciava a chegada à cidade.” Em suas peças publicitárias, a empresa buscava atrair jovens casais, destacando a qualidade de vida e a proximidade com a natureza. Em Barretos, por exemplo, esse grau de receptividade fica claro nos discursos elogiosos do prefeito da cidade, diz Bernardini: “É como se dissessem: ‘O que vocês quiserem, vamos resolver’. O papel do poder público é regular o espaço, mas a impressão é de que aconteceu o contrário”.
Apesar de se manterem dentro de um certo ideário arquitetônico e comercial, os bairros analisados são diferentes e se adaptam às demandas locais em termos de arquitetura e marketing. O loteamento de Barretos, por exemplo, remonta a algumas características do traçado pinturesco, enquanto os outros dois empreendimentos se afastam desse perfil, agregando influências funcionalistas afinadas com a noção de unidade de vizinhança, do arquiteto norte-americano Clarence Perry – como é o caso da implantação de eixos viários que conectam a cidade ao bairro.
Essas variações decorrem das especificidades locais e da autoria dos projetos, conforme aponta a pesquisadora, destacando a entrevista realizada com um dos arquitetos que trabalhou no projeto de Piracicaba, João Chadad. “Ele explica que sofreu influência do estilo modernista de Brasília e que começou a jogar alguns preceitos dentro dos conceitos da City. Então, cada um dos empreendimentos podia incorporar um pouquinho [das ideias] dos arquitetos responsáveis pelos projetos.”
Para traçar a história da empresa, a pesquisa utilizou arquivos da Cia. City, documentos registrados em cartório, projetos arquivados nas prefeituras e materiais jornalísticos encontrados em arquivos públicos. A tese concluiu que a empresa desenvolveu uma estratégia própria para alavancar seus negócios até a década de 1970, mantendo-se fiel aos seus preceitos, mas, ao mesmo tempo, dando espaço aos anseios do mercado imobiliário. Os bairros da companhia em Piracicaba e em Ribeirão Preto mantêm suas características e o público-alvo originais. Diferente de Barretos, como pontua Mano: “Talvez por [esse projeto] ter sido lançado em outro contexto econômico, no final da década, ele tenha sido menos ocupado e, por isso, não está tão bem cuidado”.