Palavras que criam fronteiras
Análise léxico-gramatical de reportagens revela representações de migrantes e refugiados no Brasil
Discursos midiáticos a respeito de migrantes e refugiados colocam em xeque a imagem hospitaleira do Brasil e desmascaram uma série de atitudes excludentes que dificultam a adaptação dessas pessoas no país, considerando-as ameaças à segurança nacional e concorrentes no mercado de trabalho. Uma dissertação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp se debruçou sobre o assunto e analisou jornais e portais noticiosos da Região Sudeste e da Região Norte a fim de descrever como foram representados a migração e seus sujeitos no período de 2015 a 2020.
Amazonense, Vivian Gomes Monteiro Souza presenciou de perto a intensificação dos fluxos migratórios para Manaus durante a graduação na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), quando lecionou língua portuguesa em abrigos para venezuelanos entre 2019 e 2020. “Eles me relatavam que eram marginalizados, o que eu também via [no dia a dia]. Comecei a pensar que a forma como as pessoas falavam sobre eles era diferente da maneira como eles se identificavam no discurso em torno da migração”, afirmou a autora da pesquisa.
Isso despertou seu interesse para realizar a análise léxico-gramatical de reportagens online dos jornais A Crítica (Amazonas) e Folha Boa Vista (Roraima), do G1 (São Paulo), portal noticioso da Globo, e do portal UOL Notícias (São Paulo). “Escolhi trabalhar com o digital pelo fácil acesso das pessoas a essas representações que vão, progressivamente, gerando estereótipos em relação a esse grupo”, argumentou. O trabalho mapeou as principais temáticas presentes nos textos, descobrindo padrões linguísticos com o auxílio da linguagem de programação R, que posteriormente foram interpretados para entender os posicionamentos dos diferentes veículos a respeito do assunto.
A automatização de processos proporcionou a caracterização de padrões invisíveis a olho nu, disse Souza, que trabalhou com uma abordagem mista, quantitativa e qualitativa, fundamentando-se nas teorias da linguística do corpus e da linguística sistêmico-funcional – proposta alinhada com o grupo de pesquisa Mídia, Discurso, Tecnologia e Sociedade (Midites), no qual a dissertação está inserida.
“Nossas escolhas, mesmo que inconscientes, trazem embebidas em si o lugar que eu coloco o outro dentro de uma chamada hierarquia social. Por isso, buscar padrões é determinante para entendermos como essas representações se dão”, pontuou o orientador da dissertação, Rodrigo Esteves de Lima-Lopes, professor do Departamento de Linguística Aplicada do IEL.
Para a pesquisadora, a possibilidade de estudar ambos os grupos, migrantes e refugiados, contemplando 192 reportagens publicadas ao longo de cinco anos, permitiu descobrir, por exemplo, que as percepções sobre esse grupo não se alteraram no período investigado. “Não se trata de uma situação que afeta somente os venezuelanos, mas também os sírios, os haitianos e outros que enfrentam questões similares de exclusão.”
Preconceito revelado
O mapeamento resultou na categorização de cinco tópicos: 1) adaptação ao país de migrantes e refugiados com o maior número de citações nas reportagens; 2) ações governamentais; 3) status legal de migrantes e refugiados; 4) intervenção política; e 5) migração venezuelana. A partir disso, segundo Souza, foi possível entender como ocorre esse novo movimento migratório (se os indivíduos estão sozinhos ou com familiares, seus meios de locomoção, a moradia etc.) e refletir sobre o que pode ser feito no momento de acolhimento dessas pessoas.
“Eu sou brasileiro e estou vendo meu país ser invadido por esses homens-bomba miseráveis que mataram crianças, adolescentes”: a frase é de uma reportagem do G1, destacada na dissertação para mostrar a caracterização de migrantes e refugiados e como se justificaria sua expulsão do Brasil. Nesse contexto, a pesquisa evidenciou os diferentes graus de preconceito sofridos por eles – baseados na nacionalidade, na capacitação profissional, nas condições socioeconômicas e na justificativa para a migração –, além de ações discriminatória com base na raça e no gênero, em desfavor de negros e mulheres.
Em outro exemplo, desta vez do UOL, um senador afirmou que “a gente dá refúgio para gente do Haiti, onde teve terremoto, calamidade e a peste campeou”. Trata-se de uma maneira de argumentar que “questões políticas, como na Venezuela, não são consideradas válidas para o acolhimento, em comparação a uma guerra civil ou a um desastre humanitário”, esclareceu Souza.
A autora do estudo também identificou a estrutura dos discursos jornalísticos a respeito da atuação governamental – que priorizaram a difusão de “feitos públicos e não necessariamente ações que contribuem para a adaptação do grupo” –, destacando, por exemplo, a quantia de dinheiro investido ou a quantidade de migrantes ou refugiados recebidos, reforçando erroneamente a visão de um país hospitaleiro.
A pesquisadora ressaltou que, em termos linguísticos, há, nos textos, recorrências de verbos relacionados à descrição de atividades (como “fugir”, “chegar”, “trabalhar” e “morar”) – “o que, de certa forma, é utilizado nos jornais como um recurso para atestar as ações negativas atribuídas a esses grupos”.
Some-se a isso, conforme a autora do trabalho, o fato de as reportagens não darem voz aos migrantes e refugiados ou de utilizarem recortes com viés negativo. “Pouco é dito sobre o que eles pensam e como podem colaborar para a mobilização de recepção e de representação.” Apesar de não terem sido uma surpresa – uma vez que “o contexto político, social e econômico do Brasil já nos mostrava a tendência para a desvalorização do migrante e do refugiado”, de acordo com Lima-Lopes –, esses resultados contribuem para “explicar detalhadamente como esse fenômeno acontece e qual a diferença entre os jornais de cada região”.
A dissertação venceu em 2024 o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos (Pradh), uma iniciativa da Unicamp e do Instituto Vladimir Herzog, na categoria Artes, Comunicação e Linguagem. De acordo com Souza, esse reconhecimento amplifica a voz dos migrantes e refugiados, inserindo-os no processo de produção de conhecimento e de políticas públicas e sociais. Um esforço que ela assumiu também no doutorado hoje em andamento na Unicamp e no qual estuda a visão desse grupo acerca da sua adaptação ao país, por meio de entrevistas concedidas a museus brasileiros.