Unicamp lidera no país estudo de neutrinos em parceria com o Fermilab, laboratório de física de partículas dos EUA
A Unicamp integra a rede de 206 instituições parceiras do projeto DUNE – Deep Underground Neutrino Experiment, um dos maiores projetos científicos internacionais da atualidade, liderado pelo Fermilab, laboratório de física de partículas de alta energia ligado ao Departamento de Energia dos Estados Unidos. O programa já conta com um financiamento da ordem de US$ 3 bilhões. A Unicamp vai coordenar os trabalhos científicos e tecnológicos feitos no Brasil. Os ganhos com a participação da Universidade no DUNE ultrapassam o conhecimento gerado e envolvem, também, o desenvolvimento industrial de alta tecnologia e a geração de empregos no país.
Desde o fim do século XIX, o solo profundo da cidade de Lead, em Dakota do Sul, nos Estados Unidos, é famoso pela exploração de ouro. O local era a sede da mina Homestake, uma das maiores da América do Norte até sua desativação, em 2002. A riqueza voltará a emergir do subsolo de Lead, mas agora em forma de imensos avanços científicos para a física de partículas. Parte do solo escavado da antiga mina será aproveitado para viabilizar a segunda fase do DUNE.
Nos dias 13 e 14 de março, lideranças do experimento — entre elas a diretora do Fermilab, Lia Merminga — estiveram na Unicamp para um workshop que celebrou as conquistas da primeira fase da parceria, concentrada no desenvolvimento de pesquisas, e traçou projeções para os trabalhos da segunda etapa, que consistirá na fabricação das tecnologias de criogenia de Argônio Líquido (LAr, na sigla em inglês) em escala real e seu transporte até as instalações dos experimentos, nos Estados Unidos. “Essa é uma oportunidade extraordinária para o país não só do ponto de vista científico, mas também tecnológico. Tudo será construído no Brasil sob a liderança da Unicamp”, avalia Pascoal Pagliuso, professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) e líder do projeto de Purificação de LAr na Unicamp.
“O Brasil tem uma longa história de parceria com o Fermilab. Ela teve início com o segundo diretor de nossa instituição, Leon Lederman, que também foi Prêmio Nobel de Física”, comenta Lia Merminga, segundo a qual a cooperação entre o Fermilab e a Unicamp resultará em ganhos estratégicos para as duas instituições. “A fase dois do projeto DUNE trará inúmeros benefícios, o que inclui o intercâmbio de um grande número de profissionais e de tecnologias entre o Brasil e os Estados Unidos.”
A viagem dos neutrinos
Os neutrinos são a segunda partícula elementar mais abundante do Universo, atrás apenas dos fótons. Eles foram teorizados nos anos 1930 por Wolfgang Pauli e tiveram sua existência comprovada em 1956 pelos norte-americanos Frederick Reines e Clyde Cowan. Existem três tipos de neutrinos: os de elétron, os de múon e os de tau. Por conta de sua participação nas interações que formam matéria e antimatéria, os estudos dos neutrinos podem revelar informações importantes acerca da origem e da dinâmica dos elementos predominantes na matéria presente na natureza. “Se os neutrinos forem a resposta para isso, eles são a razão de estarmos aqui”, aponta Lia Merminga.
O projeto DUNE consiste no desenvolvimento e instalação de detectores de neutrinos em pontos diferentes dos Estados Unidos. O primeiro local, de menores proporções, será na sede do Fermilab, na cidade de Batavia, região metropolitana de Chicago, Estado de Illinois. O outro funcionará em Dakota do Sul, a 1.500 metros de profundidade. Essa instalação, a maior já construída, estará distribuída em três cavernas que, juntas, somam uma área de 72 mil metros quadrados, o equivalente a oito campos de futebol.
Os detectores serão montados nas cavernas norte e sul. Já a caverna central contará com equipamentos de purificação, circulação e condensação de 70 mil toneladas de argônio líquido, que serão utilizados nos detectores; mais de 800 mil toneladas de rochas serão escavadas para esse fim.
Um acelerador de prótons no Fermilab vai gerar o feixe de neutrinos — a partir da colisão de partículas — que viajará pela crosta terrestre. No primeiro detector, será possível analisar os neutrinos antes da ocorrência de oscilações, além de algumas características importantes do feixe. Após essa etapa, os neutrinos percorrerão 1,3 mil quilômetros até o detector maior.
A viagem entre os dois pontos, de geração e de detecção, provoca oscilações nas partículas, fazendo com que um determinado tipo de neutrino se transforme em outro. O estudo dessas mudanças pode ajudar os cientistas a responder questões importantes sobre a composição do Universo, como a assimetria entre matéria e antimatéria e os fenômenos que explicam a formação de estrelas e buracos negros, além de auxiliar na busca por sinais do decaimento de prótons. Os experimentos abrem espaço para a chamada unificação das teorias físicas (Grand Unified Theory – GUT), segundo a qual as interações fundamentais – forças nucleares forte e fraca, força eletromagnética e força da gravidade – seriam unificadas em uma única teoria, superando deficiências do Modelo Padrão. “Esse era o sonho de [Albert] Einstein”, enfatiza Merminga.
Ciência (muito) abaixo de zero
A identificação dos neutrinos pelos detectores do DUNE ocorre a partir de sua capacidade de interação com o argônio líquido. Quando o núcleo dos átomos do gás nobre e os neutrinos interagem, são geradas partículas carregadas e luz de cintilação é emitida. Graças a esses dois fenômenos, é possível apontar a existência de neutrinos e estudá-los. Para que esse processo ocorra, a Unicamp tem papel essencial no desenvolvimento de tecnologias do sistema criogênico que resfria, condensa e faz circular o LAr a uma temperatura de -184ºC. Por conta disso, a ciência do DUNE depende da construção de imensos criostatos contendo LAr.
Outro desafio científico sobre o qual os pesquisadores da Unicamp se debruçam é a necessidade de purificar o argônio líquido. Para criar as soluções necessárias, foi instalado no IFGW o PuLarC – LAr purification test setup, um criostato em pequena escala para testes de purificação do argônio líquido. Dividido em quatro frentes de trabalho e com o envolvimento de pesquisadores do IFGW, da Faculdade de Engenharia Química (FEQ), ambos da Unicamp, e de instituições parceiras (Univer- sidade de São Paulo – USP; Universidade Federal de São Carlos – UFSCar; Universidade de São João del Rei – UFSJ; Universidade do ABC – UFABC; e Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – CBPF), foram elaborados protótipos e novas técnicas para a filtragem do argônio, além de instrumentos para monitoramento dessa pureza, que superam as tecnologias em uso no Fermilab.
“Essa é uma tecnologia central do experimento, garantindo a capacidade de purificar o argônio a quantidades de poucas partes por trilhão, uma pureza imensa que, normalmente, não é atingida no seu uso comercial”, explica Pagliuso. O pesquisador destaca que a participação da ciência brasileira nessa etapa do processo confere ao país um protagonismo importante no projeto. “O país tem um papel essencial no desenvolvimento dessa tecnologia e na construção de parte de todo o sistema criogênico. Boa parte da caverna central está nas mãos do Brasil.”
Até então, a principal impureza que os cientistas buscavam capturar do argônio eram átomos de oxigênio, que dificultam a identificação correta das partículas. Um múon, por exemplo, poderia ser erroneamente identificado como um elétron. Nesse caso, haveria dificuldades para identificar o neutrino que aparece junto a essas partículas. No entanto, os experimentos feitos pela Unicamp para desenvolver novos filtros com essa finalidade também obtiveram sucesso na captura de átomos de nitrogênio, que interferem na emissão de luz.
A interação da partícula com o argônio líquido ocorre por meio dos processos de ionização e cintilação. A ionização acontece quando os elétrons livres dos átomos de argônio são atraídos pelos detectores e coletados por planos anódicos instalados no local. A partir da trajetória da partícula, é possível identificar outras que foram produzidas. Já a cintilação acontece com a excitação dos átomos de argônio, evento em que adquirem mais energia. Nesse processo, ao sofrer um decaimento, o átomo libera energia em forma de luz. Esse tipo específico de identificação ocorrerá no DUNE graças a uma tecnologia criada pela Unicamp: o dispositivo X-Arapuca.
Caindo na Arapuca
O projeto de desenvolvimento do X-Arapuca foi concebido e coordenado por Ana Amélia Machado e Ettore Segreto, pesquisadores do IFGW. O dispositivo é constituído por uma caixa com paredes internas refletivas e, em uma das faces, um filtro de luz por onde passam apenas alguns comprimentos de onda. Na parte externa do filtro, é colocada uma película que converte o fóton emitido pela cintilação do argônio em um comprimento de onda que consegue atravessar o filtro e entrar na caixa. Lá dentro, ela tem seu comprimento de onda aumentado para um valor acima do corte do filtro, da ordem de 430 nanômetros (unidade equivalente a um bilionésimo de metro), de maneira que a partícula não consegue mais sair da arapuca. Dentro do dispositivo, são instalados sensores de silício SiPMs (Silicon Photomultiplier) que detectam os fótons.
Os primeiros testes da tecnologia foram realizados no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e, em seguida, no Laboratório de Léptons da Unicamp. O equipamento também integrou testes no CERN (sigla em francês para Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), parceiro do DUNE, e em universidades da Espanha e da Itália. Em 2022, 197 unidades do X-Arapuca foram instaladas no experimento SBND (Short Baseline Near Detector), no Fermilab, e 40 módulos no protoDUNE, um protótipo do grande experimento, instalado no CERN. A expectativa é que os resultados sejam obtidos no final deste ano ou no início de 2024. “Construiremos aqui, no Brasil, detectores de luz de cintilação, que constituem um dos dois sinais para detectar os neutrinos”, comemora Machado. Cerca de 1,5 mil módulos do X-Arapuca serão instalados nos detectores do DUNE.
“Um navio dentro de uma garrafa”
Toda a primeira fase do DUNE foi centrada no desenvolvimento e testagem das tecnologias que serão empregadas na fase dois, etapa em que tudo será construído em escala real. Cerca de 57% das escavações em Dakota do Sul já foram realizadas e a instalação dos detectores terá início em 2024.
No Brasil, os trabalhos envolverão a produção em escala industrial e o transporte de todos os equipamentos para os Estados Unidos. Esse será um enorme desafio para as empresas do Grupo Akaer, de São José dos Campos, parceiras do projeto. Além da complexidade envolvida na fabricação dos componentes, há também a necessidade de construir tudo em partes que possam ser transportadas e montadas no subsolo. “Vamos construir um navio dentro de uma garrafa. Cada detalhe é um desafio”, compara Fernando Coelho, vice-presidente do Grupo Akaer.
Os pesquisadores também esperam que continue o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para a criação de um Centro de Engenharia em Instrumentação Avançada para Física de Altas Energias — focado no sistema criogênico de LAr do DUNE e no X-Arapuca — no contexto dos programas de Centros de Inovação mantidos pela agência de fomento, em parceria com universidades e empresas. Segundo Pascoal Pagliuso, a instalação do centro depende também de apoio de outras instituições, como o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e abre espaço para que outros centros possam surgir no Brasil.
Indo além dos ganhos científicos advindos de um projeto de tais proporções, o professor ressalta a importância do DUNE para o desenvolvimento da indústria de alta tecnologia do país e para a geração de novos empregos. “Imagine se o Brasil estivesse envolvido diretamente na construção do LHC (sigla em inglês para Grande Colisor de Hádrons) do CERN, há 30 anos? Seria algo extraordinário não só para as pesquisas, mas também para a geração de empregos e o desenvolvimento tecnológico. Temos agora essas oportunidades proporcionadas pelo DUNE e não podemos perdê-las”, reflete Pagliuso.