Tese mostra como comunicação de massa serviu para atrair investimentos e legitimar a Era Vargas
A propaganda promovida e difundida pelo governo Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945) preparou o terreno para que a industrialização efetivamente tomasse corpo no país, nas décadas de 1930 e 1940. Mais do que isso, conferiu a seu projeto um caráter de espetáculo. A economista Carla Silva investigou esse processo durante sua pesquisa de doutorado. Analisou os conteúdos do Cine Jornal Brasileiro e dos 51 volumes da revista Cultura Política, dois dos principais veículos oficiais de então, para entender de que forma essa época se cristalizou na memória da nação.
Na tese “A Construção da ‘Era Vargas’: Um Estudo sobre os Aspectos da Industrialização na Propaganda Política de Massa do Estado Novo”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, Silva discute de que forma a propaganda contribuiu massivamente para a criação de um clima propício para o investimento no país.
“Inclusive para atrair o setor privado”, detalha. Analisa, ainda, seu papel para a construção da própria Era Vargas no Cartilha e peça publicitária dirigidas ao público infantil: atuação ostensiva do Departamento de Imprensa e Propaganda músicas, entre outras intervenções. Essa mudança de caráter também trouxe a ideia de uma censura branda. Uma ideia imaginário brasileiro.
Ao iniciar sua pesquisa, orientada pela professora Milena Fernandes de Oliveira, do IE, Silva pretendia se ater aos filmes do Cine Jornal Brasileiro, pro- grama oficial exibido periodicamente nas telas dos cinemas de todo o país naquele período. Seu propósito, com isso, era trazer para seu campo de estudos – história econômica – documentos raramente utilizados por economistas em suas investigações. Entretanto, ao se deparar, concretamente, com seu objeto de estudo, a economista percebeu que teria dificuldades, devido à má conservação dos filmes. “A Cinemateca, onde está depositado o acervo, sofreu um processo de sucateamento, intensificado após um incêndio em 2016. No fim do meu doutorado, em 2022, foi tomada por outro incêndio”, lembra.
A solução foi incorporar, à pesquisa, reportagens, colunas e artigos publicados na revista Cultura Política – cartilhas produzidas para crianças e adolescentes – e, também, um catálogo de 1938 da exposição comemorativa da Revolução de 1930.
Ainda que precário, o material disponível do Cine Jornal mereceu destaque na pesquisa. É que nada remetia mais à modernidade do que utilizar como meio de comunicação o cinema falado, que acabara de chegar ao Brasil. “Causava encantamento e fazia toda a diferença na propaganda política”, explica a economista.
A fim de legitimar Vargas no posto de líder após um golpe de Estado, a câmera invariavelmente o registrava como chefe autoritário e também benfeitor do povo. “Naquela época, autoritarismo não se opunha à ideia de democracia. Na verdade, vinha responder a uma necessidade de trazer progresso e de, inclusive, conquistar ganhos sociais”, pontua Silva
Embora o objetivo do Cine Jornal fosse atingir principalmente a massa, apostava-se em conteúdos específicos para atingir públicos distintos – dos intelectuais aos operários, passando por crianças. “Encontrei edições inteiras sobre os militares. Com certeza, aquelas imagens não eram para a massa trabalhadora. Talvez para as patentes mais baixas das Forças Armadas, mas também para contentar as patentes altas. Afinal, o que o governo colocava na tela grande era importante”, avalia Silva.
A comunicação em massa visava, sobretudo, convencer o trabalhador sobre a importância da sua colaboração para o desenvolvimento capitalista brasileiro. Já o recurso da repetição era amplamente utilizado para incutir, na memória do povo, a ideia de que a industrialização corria a todo vapor – quando, na verdade, era ainda embrionária. “Petróleo, siderurgia, indústria de motores, além de obras urbanas, estavam sempre aparecendo [nas propagandas]”, descreve a pesquisadora.
Na outra ponta, a revista Cultura Política dirigia-se à elite e era produzida por “intelectuais burocratas”, como define a autora do estudo. “A burocratização trouxe para dentro do Estado toda a organização socioeconômica do país, incluindo muitos intelectuais e artistas. Graciliano Ramos, por exemplo, escrevia sobre o folclore nordestino na revista.” Densa e com linguagem acadêmica – estampava até mesmo artigos em francês –, a publicação tratava de questões administrativas, como a organização do Estado.
Toda a divulgação ficava sob o guarda-chuva do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), cujo orçamento era maior que o do robusto Departamento de de Administração do Serviço Público (Dasp), responsável por toda a burocracia federal. “O esforço para a propaganda acontecer e dar resultado era de fato muito grande”, reforça Silva. Não demorou para o DIP expandir seu campo de ação, passando a controlar a mídia e a arte produzida no território brasileiro. “A censura promovida pelo DIP era diferente da policial, porque, além de violenta, era cultural. Determinava o que deveria ser gravado ou não, alterava letras de músicas, entre outras intervenções. Essa mudança de caráter também trouxe a ideia de uma censura branda. Uma ideia que persiste até hoje”, completa.
Inspirações
O Brasil não se caracterizava como uma nação unificada até 1930; era composto por regiões heterogêneas. Segundo a pesquisa, além de impulsionar a industrialização e legitimar o governo, a propaganda na Era Vargas construiu uma cara para o país, uma identidade para o seu povo.
A partir da construção dessa memória e, mais do que isso, do enquadramento dessa memória nacional coletiva, o Estado decretou, por exemplo, que o samba era música nacional e o futebol, esporte número um do país. Instituía, assim, de que forma a nação iria se enxergar. “A partir disso, cada cidadão que se via na tela se identificava e se entendia como parte de um todo”, conclui Silva.
Embora as semelhanças com as propagandas dos regimes nazistas e fascistas sejam evidentes, a pesquisadora encontrou características singulares no projeto propagandístico promovido pelo governo durante o Estado Novo. “Essa proximidade é inegável, mas não se trata de uma réplica. Existem particularidades muito relevantes no desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Além desse processo da disseminação da comunicação de massa, a propaganda serviu, também, para legitimar um governo que surgiu de um golpe, tirando uma oligarquia do poder.”