Bióloga descreve nova espécie de tardígrado
Conhecido como “urso d’água”, invertebrado foi encontrado em árvores do Instituto de Biologia
Mariana Garcia
Texto
Antonio Scarpinetti
Fotos
Há pelo menos uma década, sabe-se que as árvores do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp abrigam tardígrados, popularmente conhecidos como “ursos d’água”. A bióloga Emiliana Brotto, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal, decidiu investigá-los, descobrindo uma nova espécie. O invertebrado transparente, batizado de Milnesium iniquum (em alusão às suas garras de tamanhos desiguais), foi apresentado recentemente no periódico alemão Zoologischer Anzeiger, em artigo de capa assinado pela pesquisadora em parceria com seu orientador – o professor do IB André Garraffoni – e com o pesquisador polonês Witold Morek, um dos principais tardigradologistas da atualidade.
Tardígrados são animais aquáticos que habitam não apenas o fundo de oceanos, rios e lagos como também ambientes úmidos terrestres – como é o caso dos musgos das árvores do IB, onde Brotto coletou dezenas de indivíduos, além de ovos. Seu corpo é segmentado e recoberto por uma cutícula. Possuem quatro pares de pernas, com garras que utilizam para locomoção. Os indivíduos da espécie Milnesium iniquum apresentam, em suas garras, ganchos de comprimentos variados, um detalhe importante para determinar que se trata de uma espécie inédita, explica a mestranda do IB. “Ao mesmo tempo que verificamos ser essa uma característica comum a todos os espécimes analisados, percebemos também que se trata de um diferencial da espécie não encontrado em outras”, afirma.
Embora invisíveis a olho nu, esses animais alcançaram notoriedade mundial quando foram enviados ao espaço, em meados dos anos 2000. A fama se deve a sua capacidade singular de entrar em criptobiose, um estado de latência que permite ao animal sobreviver a uma série de situações extremas, conferindo-lhes uma aura de indestrutíveis. “Criptobiose é uma condição morfológica e fisiológica bastante particular, que ainda está sendo estudada pela ciência. Envolve alterações na própria estrutura corporal do organismo, no metabolismo”, explica Garraffoni.
Nesse estado, os tardígrados conseguem resistir ao vácuo espacial e à radiação solar, bem como sobreviver à ausência de oxigênio e à irradiação ionizante, além de suportar temperaturas que variam do zero absoluto a 149 °C. “Já se sabe que a resistência a cada estímulo varia entre as espécies [de tardígrados]”, completa a bióloga. Vale lembrar que, quando não estão em criptobiose, esses animais são meros mortais, como qualquer organismo vivo.
Atualmente, conhecem-se cerca de 1.400 espécies deles no mundo e cem, em território brasileiro. Brotto estima existirem muitas outras a serem descobertas, especialmente no Brasil, e isso devido à extensão territorial do país, sua diversidade de biomas e sua abundância de água – rios, lagos, áreas costeiras e demais ambientes úmidos. Segundo o professor do IB, o maior desafio é conseguir identificar e descrever novas espécies de tardígrados enquanto o aquecimento global e o desmatamento ameaçam extinguir uma infinidade de organismos ainda desconhecidos. “Há poucos especialistas em taxonomia desse animal para descrever tanta diversidade, ao mesmo tempo que existe uma pressão ambiental causada pela degradação acelerada”, alerta.
Taxonomia
Quando iniciou sua pesquisa, Brotto visava entender quem eram os tardígrados coletados no IB. Seu objetivo resumia-se a descobrir se faziam parte, ou não, de uma espécie já conhecida, além de investigar sua diversidade e examinar o ambiente em que viviam. “O foco era identificá-los, fazer um trabalho de taxonomia que servisse como conhecimento básico necessário para que outros estudos pudessem ser realizados. Constatamos que, praticamente debaixo dos nossos narizes, havia uma espécie ainda não registrada”, conta.
Na mesma amostra de musgo, a bióloga coletou alguns ovos de tardígrados, que foram mantidos em laboratório até eclodirem. Dessa forma, conseguiu-se obter um panorama da variação morfológica da espécie ao longo de seu desenvolvimento e comparar particularidades desses animais em diferentes momentos de sua vida. “Essa prática evita que a mesma espécie seja descrita como duas distintas, algo que pode ocorrer caso um pesquisador trabalhe com indivíduos mais jovens enquanto outro, sem ter qualquer conhecimento do estudo do primeiro, esteja investigando um indivíduo mais velho.”
A primeira análise visual realizada pela mestranda lançou mão de um microscópio de luz, que gera ima- gens com detalhes suficientes para uma identificação inicial. A etapa seguinte, realizada no Laboratório de Microscopia Eletrônica do próprio IB, permitiu estudar mais detalhadamente características externas dos tardí- grados. Em seguida, foi coletado DNA de alguns indiví- duos para sequenciamento genético e análise molecular. “Não tínhamos nenhuma descrição de espécie do Brasil feita com a utilização de todas essas técnicas. Estamos acompanhando o que vem sendo feito nos outros paí- ses”, observa Brotto.
Embora a bióloga tenha conseguido notar diferen- ças no padrão morfológico do grupo de animais coleta- dos logo na primeira análise, foi necessário um extenso trabalho, que envolveu leitura, discussão com outros pesquisadores e comparação, para definir quais os cri- térios determinantes de sua diferenciação e constatar que se tratava, realmente, de uma espécie não descrita. Além dos ganchos de comprimentos distintos, a exis- tência de placas na cutícula dorsal e as informações obtidas com a análise molecular resultaram decisivas para se chegar a essa conclusão. “Vimos que a espécie não era compatível com nenhuma descrição publicada. Morfológica e geneticamente.”
Garraffoni afirma que o trabalho empreendido pela orientada é um indicativo do avanço do estudo sobre animais do filo Tardigrada no país. A maioria das espé- cies brasileiras havia sido registrada entre 1930 e 1950 e a última, descrita no início dos anos 2000. “Não se tinha informação genética disponível sobre nenhuma das espécies pesquisadas aqui. Esta é a primeira vez que está sendo feito um trabalho de registro molecular desse porte no Brasil”, destaca o professor.
Com o avanço tecnológico, os pesquisadores do IB acreditam que alguns indivíduos coletados no passa- do – e registrados como pertencentes à mesma espécie – precisarão ter sua classificação revista. “Até a descri- ção do Milnesium iniquum, acreditava-se haver apenas uma espécie de tardígrado do gênero Milnesium”, afirma Garraffoni. Somando-se à pesquisa iniciada por Brotto na Unicamp, cientistas da Universidade Federal Rural de Pernambuco atualmente estudam indivíduos que ha- bitam o litoral brasileiro. “Trata-se de uma linha de pes- quisa extremamente promissora, que estamos também tentando implementar”, diz o orientador.
A relevância dos tardígrados para a ciência não se resume à criptobiose, embora mecanismos envolvidos nessa capacidade de transitar entre estados de latência e de atividade normal estejam sendo investigados em diferentes pesquisas, como na área de estudos médicos antienvelhecimento. “Alguns trabalhos mostram que esses animais podem ser bioindicadores, ou seja, re- velam a qualidade do ambiente que ocupam”, afirma a mestranda.
“Como estão na base da cadeia alimentar – e por serem muito pequenos –, os tardígrados conseguem aproveitar os nutrientes de células vegetais, de outros pequenos animais, bem como de bactérias e protozo- ários. E servem, ainda, de alimento para outros seres vivos, tendo um papel ecológico a ser ainda determi- nado”, diz a bióloga. “A sociedade precisa saber que é possível identificar organismos novos, ainda não re- gistrados, mesmo em um ambiente urbanizado. Basta ter um ecossistema minimamente estável. Existe uma diversidade muito grande, oculta aos nossos olhos, que é mais difícil de preservar”, pondera Garraffoni. “O que estamos perdendo com o fim dessa diversidade em nem saber o que ela é?”, indaga a pesquisadora.