Quando o lugar de médico é na cozinha
Medicina culinária agrega habilidades na cozinha à formação de profissional, com ênfase na vida saudável
Felipe Mateus
Texto
Felipe Bezerra
Fotos
O cenário é familiar: ingredientes frescos separados com antecedência em um cuidadoso mise en place; utensílios como facas, colheres e espátulas selecionados; panelas e frigideiras já posicionadas no fogão. Ao redor de tudo isso, um grupo formado por jovens cozinheiros acompanha as instruções e divide-se entre tarefas como picar, fatiar, grelhar e temperar. Diferentemente do que possa parecer, a cena descrita não é a da cozinha de um restaurante ou de um reality show culinário. Trata-se de uma aula de medicina culinária e os cozinheiros cursam o quinto ano de Medicina na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.
A medicina culinária, abordagem inovadora que começa a ocupar espaço na formação de médicos no Brasil e no exterior, tem por objetivo incorporar ao currículo desses profissionais conceitos básicos sobre alimentação saudável e nutrição de forma a promover a saúde dos pacientes e evitar que se perca, na correria da vida moderna, a cultura de ir à cozinha preparar as próprias refeições. Para isso, a disciplina não se restringe à transmissão de conceitos, mas passa por aulas práticas: todos devem pôr a mão na massa, adquirindo habilidades culinárias e sendo protagonistas de sua própria alimentação.
Na Unicamp, a medicina culinária ganhou vida por meio do Projeto MeNu – Medicina Culinária e Nutrição na Atenção Primária à Saúde, concebido pelos professores Lício Veloso e Bruno Geloneze, da FCM, e pelas professoras Ana Carolina Vasques e Caroline Capitani, do curso de Nutrição da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA). Além da disciplina “Atenção Integral à Saúde do Adulto”, do curso de Medicina, a iniciativa oferece oficinas de extensão universitária a funcionários da Universidade.
Faça o que eu faço
Conhecer a composição dos alimentos e saber quais deles contribuem para uma vida saudável é algo que, invariavelmente, integra a formação dos médicos e profissionais da saúde. Porém, entre deter e compartilhar conhecimentos teóricos e exercer e dividir uma prática saudável, há uma distância que separa médicos e pacientes saudáveis daqueles adeptos de uma má alimentação responsável por provocar vários problemas, entre os quais colesterol alto, hipertensão, diabetes e obesidade. “Se os médicos não conseguirem ter um bom padrão de saúde, como vão orientar os pacientes para fazerem o mesmo?”, questiona Vasques.
Várias pesquisas já comprovaram haver uma relação entre os hábitos cotidianos dos médicos e a postura adotada por seus pacientes. Em 2013, um estudo da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, e da Universidade de Tel Aviv, em Israel, publicado no Canadian Medical Association Journal, reuniu e comparou indicadores de saúde de médicos e de seus respectivos pacientes e verificou que os profissionais com hábitos mais saudáveis tinham pacientes com hábitos mais saudáveis. Segundo o estudo, no caso dos médicos que se vacinaram contra a gripe rotineiramente, 49,1% de seus pacientes também se vacinaram e 60,9% deles relataram ter recebido vacinas pneumocócicas. Já entre os médicos que não mantinham a rotina vacinal, a porcentagem de pacientes vacinados contra a gripe caiu para 43,2% e a dos pacientes com vacinas pneumocócicas, para 56,8%.
“Existem bons estudos mostrando, por exemplo, que o médico praticante de atividades físicas regulares é muito mais convincente na abordagem dos pacientes quando se trata de convencê-los a abandonar o sedentarismo. Com a alimentação, acontece o mesmo”, diz Geloneze.
A medicina culinária surge, assim, como uma união de esforços entre médicos e profissionais da nutrição e da gastronomia. Marca o início dessa abordagem a conferência Cozinhas Saudáveis, Vidas Saudáveis (em inglês, Healthy Kitchens, Healthy Lives), realizada em 2007 pela Escola de Medicina da Universidade de Harvard e pelo Instituto Culinário da América, nos Estados Unidos. “Essa foi uma das primeiras vezes em que se aplicou uma abordagem hands on cooking, de pôr a mão na massa, levando os médicos para a cozinha em meio a um grande evento científico”, explica Capitani. Segundo a docente, médicos que participaram do evento passaram a se alimentar melhor e a ter mais confiança para conversar sobre o tema com seus pacientes. “Se eu cuido da minha alimentação, posso falar mais e melhor sobre isso”, sintetiza.
No Brasil, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) foi a primeira a introduzir, em 2018, a medicina culinária como disciplina eletiva. Hoje, o tema está presente também em cursos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Na Unicamp, a inclusão do tema no currículo deu-se em 2022, a partir do MeNu, que surgiu como projeto de extensão voltado também aos funcionários da Universidade e a professores do ensino fundamental. O MeNu conta com financiamento da primeira edição do Edital de Curricularização da Extensão e com recursos do Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (Faepex) da Unicamp, por meio do Programa de Incentivo a Novos Docentes (Pind).
As aulas e oficinas ocorrem na Unidade de Medicina Culinária e Nutrição, no Gastrocentro, com grupos de cerca de dez estudantes por edição. Vinculado ao Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC, na sigla em inglês), a equipe também contribui com formação continuada e para a atualização de médicos de diferentes especialidades. “Os médicos conhecem a composição dos alimentos, sabem falar do teor de gordura, da concentração de sódio, de selênio, de várias coisas importantes. Mas e a comida em si, que tem relação direta com o dia a dia das pessoas? Esse é um ponto que precisa ser melhor trabalhado”, reflete Geloneze.
Mão na massa
A convite de Vasques e Capitani, o Jornal da Unicamp acompanhou uma das aulas de medicina culinária. Ao invés de lousa e carteiras, ou um local que lembre hospitais e laboratórios, os estudantes encontram, logo na chegada, o clima acolhedor de uma cozinha tomada pelo cheiro de um cafezinho passado na hora. “Os alunos se sentem muito à vontade para participar. Essa é uma aula muito diferente da rotina que eles levam”, observa Capitani.
O cuidado com tornar a aula um momento prazeroso, mais do que uma estratégia de engajamento dos jovens, atende a um importante conceito da nutrição, a comensalidade, que se refere à dimensão humana e social da alimentação. Ou seja, o prazer em preparar as refeições e compartilhar esses momentos também tem implicações na saúde das pessoas. “Quando começam a cozinhar, os alunos esquecem que somos professoras e que eles estão em uma aula. Trata-se de um momento muito agradável de conversa e de descontração”, comenta Vasques.
As atividades dividem-se em torno de quatro pilares: o autocuidado médico, o desenvolvimento de habilidades culinárias, o conhecimento de conceitos básicos de nutrição e as estratégias de comunicação entre médicos e pacientes. “Entendemos que, quanto mais se praticam as habilidades culinárias, melhor o padrão alimentar das pessoas. E, consequentemente, ao cozinhar mais em casa, a saúde do indivíduo também melhora”, analisa Capitani. Assim, esses profissionais tornam-se promotores da saúde por meio da cozinha.
No cardápio, macarrão com vegetais, pão de queijo vegano e sorbet de banana. As receitas são escolhidas pensando no baixo custo dos ingredientes e na praticidade do preparo – o macarrão, por exemplo, demanda apenas uma panela para ser preparado. Enquanto a comida vai ficando pronta e os aromas se espalham pelo ambiente, os estudantes conhecem referências importantes para a boa alimentação, como as diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira. Publicado em 2006 pelo Ministério da Saúde e revisado em 2014, o guia contém orientações para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, abordando temas que vão desde a escolha dos alimentos, seu grau de processamento e seus modos de preparo até a forma como essas práticas estão ou não de acordo com os diversos contextos sociais e culturais dos brasileiros.
No curso, os alunos também aprendem estratégias e abordagens comportamentais, como a entrevista motivacional, que facilitam um aconselhamento empático e acolhedor em questões de saúde, a investigação dos hábitos alimentares dos pacientes e a construção conjunta de metas culinárias individualizadas. Com isso, médicos e profissionais da saúde podem conhecer o universo de seus pacientes e descobrir os fatores que interferem diretamente em suas escolhas alimentares.
‘A cozinha é transformadora’
Os benefícios advindos das práticas preconizadas pela medicina culinária vão muito além dos consultórios, hospitais e unidades de saúde. Dados mostram ser urgente chamar atenção para o que chega à mesa dos brasileiros. Segundo o Ministério da Saúde, a obesidade mórbida atinge 6,7 milhões de pessoas no país. Cerca de 26% dos brasileiros convivem com a hipertensão e mais de 14 milhões, com o diabetes tipo 2. Fatores socioeconômicos também contribuem para esses índices, como o tempo gasto no trajeto de casa para o trabalho nas grandes cidades, que dificulta o planejamento e o preparo das refeições, e a dificuldade de acesso a alimentos frescos, sobretudo na periferia das grandes cidades, áreas chamadas, em virtude disso, de “desertos alimentares”.
Por conta do cenário alimentar e epidemiológico do país, a “Matriz para a Organização dos Cuidados em Alimentação e Nutrição na Atenção Primária à Saúde”, documento do Ministério da Saúde publicado em 2022, propõe que a responsabilidade pelos cuidados com a alimentação e nutrição dos pacientes seja compartilhada entre os diferentes profissionais da área. De acordo com o texto, isso não pressupõe abolir as especificidades da prática profissional de cada um, mas garantir que todos esses profissionais atuem na perspectiva de um cuidado integral.
As professoras ressaltam a importância de resgatar o hábito de cozinhar em casa, já que, segundo estudos, a prática estimula a escolha de ingredientes melhores na hora das compras e a opção por porções menores, o que implica a ingestão de uma quantidade menor de calorias, açúcares, gorduras e sal. Capitani e Vasques também defendem que, retomado o papel da cozinha como espaço de convivência, as habilidades culinárias disseminam-se com mais facilidade. “Hoje vivemos uma transição culinária. Muitas pessoas não sabem cozinhar ou escolher os alimentos porque não aprenderam em casa a fazer isso”, alerta Capitani. “Vivemos em uma realidade na qual muitos pais trabalham o dia todo. Já as crianças ficam o dia todo na escola e não têm essa vivência.”
No quinto ano do curso de Medicina, os estudantes fazem estágio e atendimentos em hospitais e unidades de saúde. Para os alunos que participaram das aulas, a abordagem significa uma contribuição valiosa na busca pela saúde integral. “Durante os estágios, a demanda dos pacientes por uma orientação nutricional é muito frequente. Eles perguntam o que devem comer, quais alimentos são mais saudáveis. Com essa abordagem, em que apresentamos objetivos práticos, isso se torna algo muito mais palpável”, afirma a estudante Joana Oliveira.
O despertar dos alunos de medicina para o fato de que a alimentação saudável leva a uma vida melhor não diz respeito apenas ao cuidado com os pacientes, mas também à organização de suas próprias rotinas. Durante a aula, vários estudantes compartilharam ter um dia a dia agitado e dificuldade de se alimentarem de forma adequada. Com a medicina culinária, uma mudança promete ocorrer em suas próprias cozinhas. “Em vários momentos, lembrei da lasanha congelada que costumo comer em casa”, confessou o estudante José Vitor Coimbra, enquanto saboreava o sorbet de banana ao final do encontro. “Estes pratos estão muito mais gostosos!”