
Um estudo recém-publicado na revista científica Journal of Applied Ecology concluiu que queimadas frequentes são benéficas para as gramíneas do Cerrado. A pesquisa, que apresenta resultados de uma dissertação de mestrado desenvolvida no Instituto de Biologia em parceria com o Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), investigou as respostas de uma comunidade de gramíneas após sete queimadas anuais, analisando propriedades da comunidade, atributos funcionais e a dinâmica populacional das espécies.
O estudo foi realizado em várias etapas, em áreas de “campo sujo” – um dos tipos de paisagem do Cerrado, formado por um campo aberto com arbustos esparsos –, na Estação Ecológica de Santa Bárbara, na região oeste do estado de São Paulo. Primeiro, em 2015, os pesquisadores contaram e identificaram todas as espécies e os indivíduos de gramíneas ao longo de 120 parcelas de um metro quadrado. Depois, entre 2015 e 2021, realizaram queimadas prescritas experimentais, uma vez por ano, sempre no meio da estação seca – entre julho e agosto. E, em 2022, repetiram o processo de contagem e identificação de espécies e indivíduos.
Realizado o trabalho de campo, os cientistas analisaram a diferença da comunidade de gramíneas entre 2015 e 2022, buscando mudanças na presença das espécies, na quantidade de indivíduos e na funcionalidade da comunidade. Eles constataram que, depois das sete queimas anuais, a comunidade de gramíneas manteve sua composição de espécies, mas aumentou sua homogeneidade e dobrou seu tamanho – de oito para 17 indivíduos por metro quadrado –, além de ganhar quatro novas espécies, aumentando sua riqueza e sua diversidade.
As queimadas anuais também elevaram a tolerância ao fogo e a regeneração vegetativa na comunidade de gramíneas, o que aumentou sua resiliência. Nesse aspecto, os cientistas identificaram quatro mecanismos de persistência populacional, ou seja, “planos de sobrevivência” que explicam como os capins se mantêm mesmo com queimadas anuais. Entre eles, os mais eficazes foram o mecanismo de “Rebrotamento + Recrutamento”, caracterizado pela sobrevivência de plantas adultas e pelo nascimento de novos filhotes por meio das sementes; e o de “Clonagem”, que resulta em grandes aumentos populacionais através da produção de “filhotes clones”.
O pesquisador Hudson Gabriel Virtuoso Fontenele, um dos autores do artigo, explica que a contribuição mais importante do trabalho foi demonstrar que, mesmo em um regime de queima extremo, as espécies continuam capazes de persistir no local, derrubando as hipóteses de que queimas frequentes esgotariam a capacidade de rebrotamento das plantas.
“Outra lacuna de conhecimento que preenchemos é relativa à contribuição das sementes para a persistência das espécies. Mostramos que as espécies só conseguem se manter frente a queimas tão frequentes porque possuem um bom estabelecimento de indivíduos jovens. Essa era uma enorme dúvida para os estudiosos do Cerrado, que costumam dizer que a germinação de sementes contribui pouco para essa vegetação”, aponta Fontenele.
A pesquisa está relacionada com a dissertação de mestrado de Fontenele. A coautora do estudo, Bruna Helena de Campos, é pós-doutoranda do IPA, órgão vinculado à Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Governo do Estado de São Paulo. A orientadora da pesquisa de mestrado, Giselda Durigan, é pesquisadora do IPA e a coorientadora Natashi Pilon é docente do IB. Todos compõem a equipe do projeto Biota Campos, projeto temático financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que visa ampliar conhecimentos sobre a biodiversidade dos campos naturais de São Paulo e de estados vizinhos e dar o embasamento científico necessário para sua conservação.

A relação entre fogo e gramíneas
Campos e savanas tropicais, como o Cerrado, costumam ser dominados por gramíneas C4, um grupo essencial para a biodiversidade, a estrutura e o funcionamento desses ecossistemas. Essa vegetação rasteira cria uma cobertura do solo altamente inflamável, o que permite a ocorrência de incêndios periódicos no Cerrado. As queimadas frequentes, por sua vez, combatem a invasão por plantas lenhosas, como arbustos e árvores, e mantêm os ecossistemas abertos, permitindo a sobrevivência de espécies endêmicas do Cerrado.
Mesmo com tamanha contribuição, as gramíneas C4 têm sido pouco estudadas, sendo negligenciadas na ciência da vegetação e em estudos populacionais e comunitários. “Essa falta de conhecimento resulta em um entendimento limitado sobre como as gramíneas respondem ao fogo e quais características influenciam essas respostas, além de dificultar o manejo e a conservação eficaz dos ecossistemas abertos”, diz Fontenele.
A pesquisa demonstrou que, ao aumentar a densidade e a cobertura das gramíneas, o fogo formou uma camada de combustível mais contínua, o que aumentou a inflamabilidade do ecossistema, característica essencial para a manutenção da vegetação aberta, já que este aumento na resiliência e na dominância das gramíneas impede ativamente que o crescimento lenhoso avance.
Além disso, as queimadas anuais também regularam o tamanho das touceiras e reduziram a competição entre as espécies por luz, água e nutrientes, permitindo a coexistência de mais indivíduos de diferentes portes. Assim, o fogo controlou a biomassa e o volume dos indivíduos, prevenindo o sombreamento de espécies menores por indivíduos grandes e altamente competitivos.
“Um estudante de mestrado que se dispõe a estudar assunto tão controverso como o fogo em ecossistemas naturais e que aceita resultados que contrariam o senso comum torna-se um profissional guiado pela ciência. Mesmo que suas conclusões desagradem muitos, serão as mais adequadas para a conservação e o uso sustentável dos ecossistemas. É essencial incentivar esse tipo de pesquisa e formar profissionais capazes de superar crenças que limitam o progresso, prejudicam a qualidade de vida das pessoas e, no caso das pesquisas em ecologia aplicada, comprometem a saúde ambiental do planeta”, conclui Durigan, pioneira nos estudos sobre o fogo no Cerrado.

Conservação e restauração do Cerrado
O estudo oferece lições fundamentais para a conservação e a restauração do Cerrado. A primeira delas é que queimadas frequentes na estação seca são menos preocupantes do que inicialmente pensado. Então, os regimes prolongados de supressão do fogo, que comprovadamente prejudicam a biomassa, a cobertura, a diversidade e o funcionamento das gramíneas, são mais prejudiciais do que as queimadas frequentes.
A segunda lição é que manter ou reintroduzir queimadas frequentes é uma ação de manejo adequada para conservar a camada de gramíneas e impulsionar a resiliência dos ecossistemas de Cerrado. E a terceira é que as gramíneas que possuem algum mecanismo de clonalidade são boas candidatas para a restauração de ecossistemas degradados, devido à sua rápida multiplicação e capacidade de colonização de áreas abertas, podendo ser utilizadas, por exemplo, para controle de erosão.
Além disso, nas palavras de Durigan, “no contexto da restauração, fica evidente que a vegetação de Cerrado restaurada terá de ser igualmente resiliente ao fogo, e isso depende da escolha certeira das espécies que não são prejudicadas pelo fogo”.
“Essas conclusões são, por si só, suficientes para repensar todo o manejo de Unidades de Conservação (UCs) de Cerrado. Já que a prescrição de queimadas e planejadas é essencial para melhorar a conservação dos ecossistemas, as UCs precisam incluí-las em seus planos de manejo para atingir efetivamente seus objetivos de conservação e preservação previstos em lei”, diz Fontenele.
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