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Atualidades Cultura e Sociedade

Médico-poeta expõe montanha-russa de sentimentos em novo livro

Heitor Moreno, cardiologista e professor da FCM, convive desde a pré-adolescência com o transtorno bipolar

O médico cardiologista Heitor Moreno, professor titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), encontrou na poesia o caminho para enfrentar uma condição de saúde mental crônica que, já na vida adulta, foi diagnosticada nos Estados Unidos como transtorno bipolar (TB). Hoje, com 67 anos, prestes a se tornar avô pela primeira vez, Moreno reuniu parte de sua vasta produção de poemas no livro Versos na montanha-russa “Down”, que será lançado em sua cidade-natal, Santos, na Casa das Culturas, no dia 25 de outubro, e no dia 28 de novembro, às 11h, no Espaço das Artes da FCM, na Unicamp.

Livro será lançado no próximo dia 25, em Santos

Neste livro, o quinto de sua carreira, aborda pela primeira vez sua condição publicamente. “Nunca escondi nada da família e dos amigos. Agora, acho importante o transtorno bipolar ser mostrado como algo que tem perspectiva de tratamento. O fato de uma pessoa ter um surto maníaco não significa que ela terá isso o resto da vida, nem todo o tempo. Até hoje vejo alunos e docentes sendo ridicularizados porque estão em depressão ou em mania. Senti que era o momento de fazer a minha parte como médico e portador da doença”, afirma.

Versos na montanha-russa “Down” traz na capa e na contracapa alusões ao Inferno de Dante Alighieri (A Divina Comédia) e tem prefácio da poetisa Carolina Ramos, de Santos, a “primeira-dama da trova brasileira”, que tem 101 anos. “Em 2024, ela venceu o concurso Contemporânea Projetos Culturais e eu fiquei em segundo lugar. Por mais que a respeite e a tenha como amiga, não gostei. Na edição desse ano, eu conquistei o primeiro lugar e ela ficou em segundo”, diverte-se. A poesia vencedora, intitulada Tu quoque, Brutus?!, concorreu com 653 trabalhos inscritos de países de língua portuguesa.

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Trilha doida e sem meta

Então, repenso meus erros, hábitos e distocias,
Concluo ser um inconsequente idiota
Sem rumo, direção, destino ou rota;
Doente, vou adiante sem mais lamentos.
Escravo da Doença, sou.
Não apto a fazer sofridos juízos,
Vou adiante…
Foi apenas mais uma volta na montanha-russa.

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Moreno começou a apresentar sintomas de depressão na pré-adolescência. “Eu sou de Santos, era uma criança que jogava futebol na praia, mas, um dia, durante umas férias escolares, passei a ficar o tempo todo deitado no chão, olhando para o céu, só pensando em coisas tristes, não comia nada. Meu pai, que era cardiologista, viu que algo estava errado”, lembra. Após dois meses, foi levado a um psiquiatra, em São Paulo, que o diagnosticou com “depressão maior”. “Naquela época não se conhecia o transtorno bipolar. Comecei com o medicamento Estelapar, o único que havia, tomei-o durante uns cinco anos, depois parei por conta própria.”

Durante o curso de Medicina em Ribeirão Preto, depois na residência médica e, já formado, com consultório em Santos, teve novos episódios de depressão. “Ainda na faculdade, me envolvia em brigas frequentes, saía para a pancadaria, o pessoal da república onde morava argumentava que eu tinha bebido demais. Na realidade, em várias situações, eu nem havia bebido. Fui suspenso do centro acadêmico da faculdade por seis meses por uma dessas brigas. Passei por inúmeros tratamentos com fármacos antidepressivos, pois os quadros de melancolia predominavam. Passava períodos bem, mas depois voltava a ficar deprimido”, continua. “Aceitava até ‘terapias religiosas’, sugeridas por amigos, no desespero em busca da cura, sem efeitos. Vivia triste, como que envolto em névoas, sem perspectivas.”

O cardiologista Heitor Moreno: poesia para enfrentar condição de saúde mental crônica
O cardiologista Heitor Moreno: poesia para enfrentar condição de saúde mental crônica

Após doutorado na Unicamp, passou dois anos na Stanford University, na Califórnia, Estados Unidos. Foi ali que seu caminho cruzou com o do psiquiatra norte-americano Terence Ketter, um dos fundadores da Clínica de Transtornos Bipolares da Faculdade de Medicina da Stanford University e reconhecido por sua pesquisa inovadora sobre a neurobiologia dos transtornos de humor.

“Na Califórnia, tive dois surtos de mania, passei por dois psiquiatras e me indicaram falar com o doutor Ketter. Nunca me esqueço da primeira consulta, nós tínhamos mais ou menos a mesma idade. Ele me falou sobre transtorno bipolar. ‘Desculpe, não conheço essa doença’, eu disse. Ele me explicou, falou sobre os estabilizadores de humor, que são ao mesmo tempo antidepressivos e evitam os quadros de mania e me acompanhou enquanto estive lá. Continuei me tratando, tomo remédios até hoje”, relata.

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Lágrimas

Lágrimas,
Trilhas para o centro e para todos os cantos;
Paralamas, paraquedas e para-nadas.
Nunca para cima ou avante, por vezes adiante,
Fazendo da face mero lugar comum.

Lágrimas,
Algumas por nada, todas por alguém.
Limites de emoções e delimites.
Sempre sem razão e nunca em vão.
Apenas lágrimas por lágrimas.

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De volta a Campinas, prestou concurso para docente, em 1997, e desde então seguiu com suas aulas na Unicamp, seus estudos clínicos em hipertensão e seu apreço pela poesia. Mais recentemente, adicionou a música entre suas paixões. “Quando estou em hipomania (alta energia, criatividade e confiança), escrevo uma boa poesia em 20 minutos. Em outros 20 minutos, o poema vira música, no violão, cavaquinho ou ukulele. Minha família me incentivou e decidi lançar dois livros, um com poesias ‘down’ e outro ‘high’. O primeiro comecei a preparar há seis meses e convidei meu atual psiquiatra, Lucas Mella, para trazer sua visão”, conta. “Fiquei surpreso com sua capacidade de mesclar conhecimento do distúrbio com a lira dos versos do livro.”

Mella, em seu prefácio, destaca que, a partir da aceitação da doença, ou “da Cruz que passa”, Moreno “percorre os trilhos da sublimação”. Para o psiquiatra, a antologia sublima sua dor e seu desamparo. “Pela arte, estabelece pontes entre sua mente e a mente dos leitores, que o compreendem, porque com ele se identificam. Ele atenua sua solidão, compartilhando seu sofrimento. Felizmente, não recusou a caneta e fez-se verdadeiramente poeta, divulgando seus delírios em sublimes e demasiadamente humanos versos. Não aceitou ser ‘escravo da Doença’, tampouco ‘o sepultamento antes da morte’. Trouxe alento e compaixão aos inúmeros deprimidos, tornando-se perene para eles.”

Moreno conta que é criticado por seus pares por não cobrar por seus livros. “Tenho uma dívida gigantesca com Deus, familiares e amigos, e a sociedade. Tive todos os médicos especialistas e recursos disponíveis que me levaram a chegar até aqui, em termos de idade e evolução profissional. O acesso a eletroconvulsoterapia (ECP) por quatro ciclos de 12 sessões em minha vida salvou-me da depressão refratária. Também, mais recentemente, ciclos de estimulação eletromagnética (TMS), estimulação transcraniana direta (TDCS) e cetamina endovenosa foram determinantes na estabilização desses quadros resistentes a fármacos”, explica. Para manutenção, conta, ingere 10 comprimidos pela manhã e 12 comprimidos à noite, de diferentes mecanismos de ação, todos prescritos por seu psiquiatra.

O poeta, em seu texto de apresentação sobre o livro, ressalta: “Como médico, não poderia deixar de alertar que muitos leitores normais se sentirão em uma montanha-russa (não necessariamente com TB) por oscilações do humor. Alerta: nossa Existência pressupõe sermos “multipolares no tempo-espaço”. Viver é vibrar, oscilar (vibrar partículas, para os físicos, talvez).”

Marcação da poesia

A Montanha-russa

Tripudiei do Amor e da Fé
Carrasco à espera para abater a fera
Acovardei-me e pedi clemência.
Pesadelo? Não… Foi só mais um passeio na Montanha-russa!

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Foto de capa:

Médico reuniu parte de sua vasta produção de poemas no livro Versos na montanha-russa “Down”
Médico reuniu parte de sua vasta produção de poemas no livro Versos na montanha-russa “Down”
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