Arte tecnológica usa fungos e IA
para questionar controle da natureza
Obra do coletivo Cesar & Lois,
que reúne professor da Unicamp e artista norte-americana,
é finalista do Lumen Prize 2025
Na natureza, o fungo desempenha um papel reciclador, decompondo moléculas orgânicas complexas em nutrientes que serão reutilizados por plantas e outros organismos. No trabalho do coletivo artístico Cesar & Lois, formado pelo artista e professor Cesar Baio, do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação,do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, e pela artista norte-americana Lucy HG Solomon, da California State University San Marcos, o fungo se tornou metáfora para questionar o pensamento moderno segundo o qual a humanidade deve se sobrepor à natureza. Fungos, tecnologia e inteligência artificial se fundem nas instalações artísticas da dupla, que começou a parceria em 2017 e, nesta temporada, é finalista do Lumen Prize, um dos mais renomados prêmios de arte e tecnologia do mundo, que vai anunciar seus vencedores em outubro no Reino Unido.
A dupla, que já venceu o Lumem Prize em 2019, com a obra Culturas Degenerativas, em que um livro é devorado por fungos, apresenta agora Ser hifanizado (Being Hyphaenated). “Esse trabalho nasceu de uma pesquisa sobre a complexidade e a inteligência de uma floresta, como a floresta toma suas decisões, como interage com os elementos que a compõem e com os elementos externos”, destaca Baio. “Pensamos no nome Ser hifanizado para ilustrar uma forma de existência na qual nos conectamos com outras espécies, estendemos nossos sentidos, nossas redes, para criar associações com entidades não humanas.”
O nome da obra vem da hifa, explica o artista, que é “uma parte do corpo dos fungos responsável pela absorção de nutrientes e que os conecta com as raízes das plantas para formar a micorriza, uma associação simbiótica entre os fungos e as raízes das árvores. É por meio dela que uma árvore pode se conectar a uma outra árvore. Olhamos as árvores como indivíduos e dificilmente vemos suas conexões; mas esses indivíduos estão todos conectados, pelo ar e pela terra”.

A dupla passou um ano pesquisando sobre a formação e a interação dessas conexões na University of California, Irvine (UCI), nos Estados Unidos, a partir do bioma do chaparral californiano. “O Treseder Lab (UCI) tem um estudo muito particular sobre a relação dos fungos com as mudanças climáticas, e nos reunimos com pesquisadores e estudantes de mestrado e doutorado do laboratório, que nos ajudaram na pesquisa e forneceram dados.” O trabalho resultou numa obra-ecossistema, em que um pequeno tanque de água libera umidade conforme o sistema entende ser necessário.
“Os fungos interagem entre eles e com as pessoas que estão vendo a obra, já que há ciclos de respiração, e os espectadores também respiram. Quando há muitas pessoas, o nível de umidade pode flutuar. Os fungos, quando percebem a umidade, têm uma atividade metabólica aumentada, e as luzes respondem a isso. Um sistema de IA captura os dados dos organismos e procura padrões. O dado que procuramos é de bioeletricidade”, continua.
“Usamos IA não porque está no hype, e sim pela necessidade que sentimos de remodelar o conceito de tecnologia e suas aplicações na sociedade. A inteligência artificial é treinada a partir dos dados para responder ao mundo com a lógica dos fungos, não com a nossa. A tecnologia é utilizada para ampliar a conexão entre o espectador, a obra, e esses seres vivos, cuja existência é radicalmente diferente da nossa”, ressalta Baio.
O professor conta que a obra, que ficou exposta em Irvine de setembro de 2024 a janeiro deste ano, foi escolhida para ser montada de maneira permanente na universidade norte-americana. “O lançamento será em outubro, vou participar do evento de abertura”, afirma.


Exposição na Unicamp
Para quem ficou curioso, Baio adianta que está em fase de preparação uma obra para ser exibida na Unicamp, na Galeria de Arte do Instituto de Artes (Gaia), em novembro, a qual reunirá artistas professores do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) do IA.
“Tenho um projeto Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] para gerar duas obras, uma delas para a exposição. Os trabalhos estão sendo desenvolvidos com o IB [Instituto de Biologia], que está hospedando parte dos experimentos. Nesta pesquisa, juntamente com a equipe da professora Juliana Mayer, vamos analisar os dados dos fungos em termos científicos, já que temos feito os trabalhos sem seguir necessariamente protocolos científicos e sim baseados em pesquisas já existentes”, enfatiza. Os dados serão processados com uso de desenvolvimento de software de IA pela Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp em Limeira, com colaboração da professora Lívia Ruback.
Baio destaca que sua motivação é produzir arte que traga questionamentos sobre o papel da tecnologia. “Somos a primeira geração na história a entender que podemos causar nossa própria extinção. Qual a raiz desse momento? Procurando padrões, comecei a identificar a distância que temos da natureza.”

“Em algum momento, o pensamento moderno criou uma barreira entre a humanidade e o restante do ecossistema. A ideia de que a existência humana é diferente da existência animal é um pensamento que vem desde os tempos antigos. Na modernidade, Kant [Emanuel Kant, filósofo alemão] trouxe a teoria da razão, da excepcionalidade humana, modo como nomeou o argumento dele de que o ser humano, apesar de ser um animal, é um ser excepcional. Assim, foi criada uma barreira ontológica entre a humanidade e o restante do ecossistema, como se pudéssemos existir sem o ecossistema, ainda que o exploremos economicamente”, completa. Para o professor, que referencia autores da chamada nova ecologia ou teorias críticas do Antropoceno, ao longo da modernidade esse pensamento acabou sendo usado como uma maneira de justificar o domínio, o controle e a espoliação das forças naturais.
“No capitalismo entendido por Marx, o processo de produção de mais valia vem a partir de outro ser humano, mas, neste contexto, esse pensamento foi atualizado. O capitalismo é a produção de mais valia a partir da exploração das forças da natureza, seja um ser humano ou um rio”, continua Baio, citando o historiador ambiental Jason W. More. “Esse celular que usamos todos os dias um dia foi montanha. Qual montanha? Não sabemos, o processo não nos deixa saber. É diferente de quando você vai comprar um café e sabe de qual região ele veio. O celular veio de terras raras, talvez lá da Índia, o minério de ferro veio de Minas Gerais, e aquilo que um dia foi montanha hoje é um buraco no meio da paisagem. Foram essas discussões que me motivaram.”
Foto de capa:
