
O legado de Fernando Costa,
que fez história como reitor da Unicamp
Médico hematologista comemora 75 anos e se aposenta,
mas está longe de parar suas atividades
Com um sorriso tímido e a fala calma, o médico hematologista Fernando Ferreira Costa, reitor da Unicamp entre os anos 2009-2013, relembra sua trajetória de 46 anos de docência, rodeado por papéis, livros, publicações e muitas memórias. Dos primeiros anos no hospital, quando ajudou a retirar os equipamentos de um grande porão para colocar o laboratório em funcionamento, até sua entrada, por acaso, na carreira administrativa, que culminou no desafio de comandar a Unicamp, Costa revisita seu legado, logo após completar 75 anos, no dia sete de setembro. E, recém-aposentado, afirma que continuará trabalhando.
Seu plano é ficar pelo menos mais quatro anos na Universidade, agora como professor sênior, para finalizar a supervisão de doutorados e pós-doutorados e encerrar projetos em andamento. “Por enquanto, sigo trabalhando normalmente. Tenho compromissos com projetos da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e com meus alunos.”
Natural de Santa Rita do Passa Quatro, São Paulo, filho de professores, desde o colégio desejava estudar medicina. “Entrei na faculdade na USP (Universidade de São Paulo) em Ribeirão Preto. Logo no início do curso, fui professor de cursinho, no COC, dava aulas para me sustentar. A faculdade de Ribeirão era e é muito importante, inovadora, os professores fazem muitas pesquisas. E, no meio para o fim do curso, tomei a decisão de fazer carreira universitária”, lembra.
Ainda no quarto ano de medicina, começou a se dedicar à hematologia. “É uma especialidade difícil e complicada, as doenças são graves, mas tem um campo muito grande para trabalhar e descobrir coisas. O verdadeiro hematologista não cuida só do doente, vai ao laboratório, usa o microscópio e analisa os exames. Na hematologia, houve progressos incríveis desde que iniciei. Doenças antes consideradas incuráveis atualmente contam com terapias que aumentam a sobrevida”, continua.

Costa se formou em 1974, completou o mestrado em 1979 e o doutorado em 1981, ambos sob orientação do professor Marco Antônio Zago, em Ribeirão Preto. No final daquela década, foi indicado para trabalhar na Unicamp. “Nessa época, o hospital no campus ainda estava em construção, depois começaram a ampliar o atendimento. A faculdade estava se mudando, e eles precisavam de docentes na área de hematologia. Eu estava no final da pós-graduação e comecei a vir para Campinas para organizar o laboratório de hematologia dos departamentos de patologia clínica”, lembra. “Assim que terminei a pós, vim definitivamente. Por uns anos, o hospital do campus tinha somente ambulatórios e laboratórios.”
O hematologista conta que, naquela época, alguns hospitais começaram a ser construídos no estado de São Paulo, enquanto o da Unicamp já estava em fase de conclusão. “Havia alguns equipamentos, mas faltava serem instalados. O que fizemos foi tirar tudo de um grande porão e colocar para funcionar. Eram bons equipamentos, resultado de um convênio. O laboratório de hematologia talvez tenha ficado o melhor do Brasil naquela época.”
Em 1985, Costa havia prestado concurso para trabalhar em Ribeirão Preto, e a vaga fora confirmada. O médico resolveu retornar à cidade, mas logo depois foi fazer pós-doutorado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, no departamento de hematologia do professor Bernard G. Forget. “Fiquei lá entre 1987 e 1989, e, quando voltei, minha esposa, que é médica e era docente na Unicamp, resolveu ficar em Campinas. Fiquei cansado de viajar, também gostava de Campinas e acabei voltando para cá em definitivo.”
Nesse período, a hematologia da clínica médica já estava instalada no campus, e Costa mudou de departamento depois que a temporada em Yale possibilitou-lhe novos entendimentos. “Após aquele tempo no exterior, o departamento de clínica médica passou a fazer mais sentido, pois englobava as atividades de ambulatório, enfermaria e laboratório. Desde 1990, estou aqui, tenho um ambulatório a que vou até hoje. Oriento alunos residentes, dei muitas aulas e fiz muitas pesquisas”, destaca Costa, que optou por se dedicar a uma área de pesquisa específica, a das alterações hereditárias do glóbulo vermelho.
“A Unicamp passou a se tornar referência no estudo de hemoglobinopatias, e eu me especializei em anemia falciforme e talassemia”, conta, depois de pegar um modelo de ‘glóbulo vermelho’ nas mãos para ilustrar sua explicação. “Esse é um glóbulo vermelho, dentro tem a hemoglobina, e isso foi meu núcleo de pesquisa a vida toda.”

Novos desafios
Em paralelo com a carreira acadêmica, novos desafios surgiram, bem longe dos laboratórios. “Foi por acaso que entrei na carreira administrativa, mas todo docente sabe que, um dia, pode se tornar chefe de departamento. Eu me tornei coordenador do Hemocentro da Unicamp após o doutor Carmino de Souza se tornar secretário de saúde do governo de São Paulo, em 1993. Fui convidado porque não tinha mais ninguém”, diverte-se.
Um ano depois, veio um novo convite, para participar da eleição para dirigir a Faculdade de Ciências Médicas (FCM). “Acabei sendo eleito, foi uma fase boa, ganhei experiência e boas lembranças. Fiquei até 1998, ampliamos a faculdade, pude aplicar muito do que aprendi no exterior, procurei docentes, programas e demos suporte para publicações.”
No fim do mandato, de volta ao Hemocentro, seguiu seu trabalho até ser convidado pelo então reitor Carlos Brito Cruz, que comandou a Universidade de 2002 a 2005, para assumir o cargo de pró-reitor de Pesquisa. No mandato seguinte, José Tadeu Jorge, reitor entre os anos de 2005 e 2009, convidou-o para o cargo de coordenador-geral da Unicamp. “Foi sem planejamento, mas eu me dediquei às atividades administrativas com a importante noção de que continuava um docente. Foram boas experiências.”
Em abril de 2009, foi a sua vez de assumir a Reitoria. Costa comandou a Unicamp até abril de 2013 e guarda, do período, as melhores lembranças. “A ideia sempre foi cuidar da Universidade, e é claro que não se faz nada sozinho. Mas, mesmo como reitor, mantive as aulas, meus estudantes, o ambulatório, ainda que de maneira mais limitada, pois o cargo exige muitas viagens e muitos compromissos.”

Vida de reitor
O Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis), voltado para estudantes de escolas públicas de Campinas, que passaram a poder ingressar na graduação sem prestar vestibular, é um dos seus orgulhos. Costa recorre aos volumes guardados em sua estante e mostra, com alegria, um exemplar do Jornal da Unicamp que explica o nascimento do programa. “Foi difícil convencer todo mundo, mas deu certo.”
“O Profis é um projeto de que gosto muito e que se consolidou. Na época, ainda não havia nenhum sistema de cotas como hoje, somente um bônus para alunos de escolas públicas. Mas, às vezes, os selecionados para os bônus vinham de bons colégios. Procuramos fazer diferente, olhar para o aluno que vem da periferia, de lugares muito distantes. Um aluno bom de uma escola não muito boa também tem que ter oportunidade”, explica. “Aumentar a diversidade no campus foi importante para a Universidade, e o Profis foi um dos projetos que incentivou essa diversidade.”
De seus anos como reitor, Costa enumera alguns de seus projetos, fazendo uso de uma lista manuscrita, para “não esquecer nada”. “Resolvemos o problema do lixo, com a instalação e a organização de contêineres; olhamos para o trânsito, que sempre foi problemático, e colocamos o pedestre como prioridade; começamos o projeto Música no Campus, construímos quadras e espaços de convívio, conseguimos bolsas do CNPq para o Ciência e Arte nas férias e demos início ao projeto da Biblioteca de Obras Raras (Bora), que começou quando eu era coordenador-geral e terminou quando já tinha finalizado meu mandato”, lembra.
Durante seu período na reitoria, a Unicamp aplicou cerca de R$320 milhões em obras físicas, que resultaram em 49.300 metros quadrados de obras prediais, 31.500 metros quadrados de edificações novas ou ampliações e 17.600 metros quadrados de reformas, além de investir cerca de R$66,9 milhões em obras de infraestrutura urbana e benfeitorias prediais, com destaque para a valorização dos espaços de ensino na graduação.
Na graduação, o número de alunos matriculados na Universidade subiu de 15.588 em 2009 para 17.097 em 2012. Em abril de 2013, quando Costa encerrou o quadriênio administrativo na reitoria, a Unicamp tinha 66 cursos de graduação e 142 cursos de pós-graduação em seus campi de Campinas, Piracicaba e Limeira, um total de 1.750 docentes (98% com titulação mínima de doutor e 89% atuando em regime de dedicação exclusiva) e havia subido do 295º lugar, em 2009, para o 228º, em 2012, no levantamento da publicação britânica QS World University Rankings, que avalia as universidades mais influentes do mundo.
Novos ares
Costa também enfatiza programas que contaram com financiamentos e trouxeram, além de recursos, novos ares para a Universidade. “O Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) fazia regularmente repasse de verbas, o que precisávamos era descobrir como distribuir esses recursos e passar a elaborar editais competitivos para evitar corporativismo, ter laboratórios para fazer pesquisa para toda a universidade e promover inovações.”
Dos seus tempos no trabalho administrativo, o médico destaca ainda a criação do Instituto de Estudos Avançados (Idea), o Programa Professor Visitante e a série de publicações do Grupo de Ensino Superior, entre tantas outras realizações. No período de sua gestão, a Universidade foi responsável por 243 pedidos de patentes nacionais, com especial destaque para o ano de 2012, quando os 73 pedidos de patentes depositados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) constituíram um recorde histórico.
“Olhando assim, daqui, eu gosto, contribuí um pouquinho para a Unicamp”, completa, com modéstia. Entre as escadas que levam aos laboratórios do Hemocentro aos caminhos que ajudou a pavimentar na Universidade, das boas práticas que contribuiu para implantar no campus aos alunos e ex-alunos que conquistaram lugar de destaque na medicina, Costa continua seu trabalho, com a determinação de quem sabe que sua missão ainda não terminou. “Sempre quis contribuir. Administrar a Unicamp foi um desafio, um processo complexo, mas como reitor fiz muita coisa. Olhando hoje, há muitos projetos que continuaram, o que significa que fizemos o certo.”
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