


A história oral em Nänsêpotiti
A história oral em Nänsêpotiti

(Continuação)
Aos poucos chegavam os personagens principais daquele dia de roda de conversa na aldeia Nänsêpotiti: as tuatun Kakrê, Krepän e Pärikiati e os tapuntun Pätí e Akã. Sentadas sob a sombra, aguardando o início da gravação, estavam as principais testemunhas da história recente dos Panará, hoje transmitida de forma oral entre as gerações e registrada, principalmente, a partir de iniciativas lideradas pelo Instituto Socioambiental (ISA).
O tempo necessário para ajustar os microfones e câmeras dava ao cenário da roda de conversa a atmosfera de um altar, margeado por “fiéis” ansiosos pelo início da cerimônia. Sob a bênção da sombra, o sol forte reforçava a silhueta do grupo em foco, que pacientemente assistia a tudo sem reclamar da espera. Os objetos indígenas ao centro completavam a cena, como se fossem oferendas.
As pesquisadoras da Unicamp começaram a fazer as perguntas com base em algumas dúvidas surgidas na primeira roda de conversa, realizada na aldeia Kotikô: como era o Rio Iriri no passado? Quais as características dos peixes, como tamanho e quantidade? O regime de chuvas havia mudado? Quais foram as mudanças recentes no Rio Iriri e quais as observadas quando comparadas ao período anterior à partida para o Xingu? Alguma mudança havia sido observada durante o Timbó? Quais as causas para as mudanças observadas?

As respostas coincidiram com o que ficou dito na aldeia Kotikô: antes a água era muito boa, não tinha cheiro nem gosto e os Panará não passavam mal quando a bebiam direto do rio. Os peixes eram maiores e os Panará podiam comê-los sem medo de alguma contaminação. O Iriri era a única herança que podiam deixar para as crianças Panará e os preocupava muito ver que a água estava cada vez mais escassa e suja. Em determinadas épocas do ano, como fevereiro, o cheiro da água também era pior. Akã ressaltou que, se hoje estavam deixando de usar a água para beber, o que mais teriam que deixar de fazer no futuro? Era necessário que todos cuidassem do rio e monitorassem as mudanças.
Sobre o regime das chuvas, os tapuntun e as tuatun contaram que a vazão do rio aumentava e diminuía em períodos diferentes dos verificados no passado, que havia diminuído o número de espécies de peixes e que algumas já não existiam mais naquele trecho de rio, como o curimbatá. As fazendas estavam muito próximas da terra indígena, o gado ia para o rio e as queimadas sem controle “comiam” a mata. “A nascente do rio está sem mata. Isso é muito ruim. Os parentes de vocês (referência aos não indígenas) estão acabando com tudo”, disse Akã. A última pergunta ofereceu uma oportunidade para falarem livremente sobre o que mais gostariam de dizer aos não indígenas. Nesse momento, Akã ficou de pé e começou a falar alto, e de forma contundente, sobre a necessidade da união entre os saberes. Como um guerreiro pronto para a batalha, afirmou que precisamos (Universidade e os Panará) continuar juntos, fazendo pesquisas e projetos. “Nós estamos fazendo a nossa parte e vocês têm que ajudar a cuidar do rio, dos animais e da mata, chegando até as autoridades”.
As palavras de Akã saíam da sua mente e do seu coração, notava-se, não só pela verdade e contundência dessas palavras, mas porque seu corpo se alinhava com o centro da mangueira, gerando uma comparação inevitável entre a força dos argumentos e a robustez do tronco da árvore, elementos da luta para que a natureza continue a dar frutos e sombra à realidade aquecida pelas urgências.
Montagner fez, então, um agradecimento também contundente, correspondido por Akã e seguido pelas palmas de quem acompanhava a roda de conversa. Em foto e vídeos ficou registrado o momento final da roda de conversa: entre os tapuntun e as tuatun, pesquisadoras, tradutores indígenas e a equipe de reportagem, encerrando um dos momentos mais importantes e significativos de toda a nossa estadia entre os Panará.
A roda de conversa terminou e o almoço nos esperava. Depois de comer, chegou o momento de as equipes relaxarem um pouco, sob a mesma sombra que antes havia abrigado os tapuntun e as tuatun. De repente, ouvimos de longe que estava se aproximando uma caça, que seria preparada para o jantar. Como se trata de uma situação incomum nos ambientes urbanos, registramos as mulheres Panará afiando os facões para o preparo da carne de anta.

O descanso pós almoço convidou-nos a um banho de rio, e assim todos desceram o barranco que levava até o leito do Iriri. Na margem, bem perto da água, dezenas de uma das personagens mais constantes daquela paisagem ribeirinha, as borboletas, que mais pareciam pétalas no ar, flutuando sobre as águas claras. Sempre em grupo, elas produziam uma espécie de balé na margem do rio. Registrar a dança das borboletas ofereceu a oportunidade de capturar a poesia em imagem, chance que o repórter cinematográfico Marcos Botelho Jr. não desperdiçou.
O momento de nadar no Iriri deu um refresco ao calor da tarde de julho no sul do Pará. A água não estava fria, mas, ao entrar, precisamos ter cuidado com as arraias de água doce. Caso alguém fosse ferroado, além da dor forte, teria de enfrentar horas de espera até receber socorro médico, dada a grande distância até o local mais próximo de atendimento. Nadar no rio é também um desafio para os pouco acostumados. Na superfície, quase não se vê a correnteza, mas, quando o corpo afunda, pode ser facilmente arrastado. É aí que se aprende o significado da expressão “nadar contra a correnteza”. Algo que, literalmente, não é nada fácil. Ninguém se arriscou a ficar muito longe de um banco de areia, no meio do leito, que “dava pé” ao grupo, o que significou um momento de pausa nas tensões daquele dia sensível e exigente. Era a hora da descontração, do entrosamento e de entender o que Perankõ havia dito na aldeia Kotikô: “O rio é também pra gente brincar”. Nesse mesmo dia, depois do banho de rio, as pesquisadoras fizeram a coleta de amostras da água do Rio Iriri, em um trecho mais afastado da área onde ficavam as casas tradicionais.

No caminho até a ponte que dá acesso à aldeia, e onde o barco as aguardava, foi possível ver novamente as mulheres Panará, cuja força impressiona. Elas voltavam da roça, carregando pesados feixes de lenha. É difícil não sentir certa surpresa ao ver essa cena, mesmo sabendo que as mulheres estão reproduzindo os hábitos sedimentados na cultura Panará, em que a elas cabem o plantio, a alimentação da família e o cuidado com os filhos e parentes, enquanto que, aos homens, cabem a caça e a proteção da aldeia. As mulheres Panará trabalham de sol a sol, muitas vezes com os filhos amarrados nas costas ou no colo.
Antes que a luz do sol caísse totalmente, a coleta de material terminou, e Cassiana Montagner retornou a tempo de explicar o procedimento realizado, em uma rápida entrevista gravada sobre a ponte que é o principal acesso à aldeia.
Kiarasy Panará participou ativamente da coleta de amostras da água do Iriri. Conhecido por muitos como Cutia, o pesquisador Panará é o principal interlocutor para as demandas das equipes nas aldeias. Chegando ao trecho do rio onde o barco iria buscar as equipes, conseguimos registrar também as imagens do sempre colorido entardecer Panará.
Jovens Panará falam sobre a importância do intercâmbio cultural e da necessidade de fazer a defesa coletiva dos valores ambientais e dos direitos humanos, por meio da educação.
(Continua …)

FICHA TÉCNICA
Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Hebe Rios e Bruna Mozer
Fotos: Raissa Azeredo e Marcos Botelho Jr.
Vídeos: Marcos Botelho Jr., Bruno Jungmann, Krekiô Panará, Ricardo Abad (drone)
Edição de imagem: Alex Calixto, Paulo Cavalheri, Thiago dos Anjos
Arte: Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Coordenadora audiovisual: Patrícia Lauretti
Coordenação geral: Álvaro Kassab, Christiane Neme Campos, Laura Freitas Rodrigues