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Selo saber Panará

Rumo a Nänsêpotiti

Rumo a Nänsêpotiti

Céu estrelado na primeira noite na aldeia (Foto: Marcos Botelho Jr.)
Selo saber Panará

Amanhecemos certos de que a viagem, dada a complexidade logística e o número de horas, seria desgastante. Antes da saída, tentamos ver mais uma vez um casal de araras-canindé que fez ninho em um tronco oco, bem em frente a um dos quartos do hotel em Guarantã do Norte. A exibição que as aves haviam feito no dia anterior, porém, não se repetiu e todos fomos para a recepção, onde o tempo passava em ritmo de espera. Os dois carros que levariam as equipes estavam sendo preparados para transportar malas, material de coleta das amostras e os produtos necessários à estadia na aldeia Nänsêpotiti. Uma parte da equipe saiu na frente e outra ficou aguardando a chegada de Pasyma, que estava na sede da Associação Iakiô e iria para a aldeia com o grupo. Já na estrada, nossa velocidade variava bastante. O trajeto até a aldeia é todo de terra e é preciso ter muita habilidade para manter a velocidade constante, não derrapar e nem cair em valetas e buracos, que desestabilizam o carro, podendo provocar acidentes graves.

O constante tráfego de caminhões grandes e pesados criava uma farta nuvem de poeira que tirava toda a visibilidade do motorista. Era preciso, além de experiência, certa dose de sorte, para não pegar um caminhão no mesmo sentido da estrada. A poeira densa e os solavancos faziam a viagem parecer um rally. Uma simples ultrapassagem gerava forte emoção e cada quilômetro percorrido era arriscado, sujeito a imprevistos, diminuições bruscas de velocidade e eventuais paradas. Além de experiência, o motorista precisava ter muita prudência. E o carro precisava ser resistente. Aos passageiros cabia, além da confiança nele, a busca de distrações, como observar as paisagens pelo caminho e conversar para não se preocupar com os possíveis problemas. Ademais, as horas de viagem alimentavam a curiosidade sobre o que os dias na aldeia Nänsêpotiti reservariam ao grupo, o que aguçou o diálogo entre Pasyma e as pesquisadoras Telma e Edilaine.

O filho de Sôkriti e na época presidente da Associação Iakiô contou a própria história e destacou alguns aspectos da cultura Panará, como a divisão das aldeias em clãs. Cada uma possui quatro clãs diferentes – kwakyatantera, keatsôtantera, kukrenôantera e kwôtsitantera – e é proibida a união entre pessoas de um mesmo clã. Pasyma explicou também que, antes de seu povo ser transferido involuntariamente para o Xingu, havia 11 aldeias e que o pai dele não pensava que o “homem branco” pudesse fazer tanto mal aos Panará, como depois aconteceu e ainda ocorre. A possibilidade de contaminação do Rio Iriri ampliava a necessidade de mudanças nas ações das empresas e na mentalidade dos empresários do agronegócio. A vontade de preservação precisava ser coletiva. “Só indígena se preocupar não resolve. Tem que ser todo mundo. Amanhã planta não vai crescer. A chuva vai diminuir ou aumentar muito. Tem que colocar os não indígenas nesse caminho de luta também”, afirmou.

O filho de Sôkriti e presidente da Associação Iakiô, Pasyma:  caminho de luta
Pasyma, filho de Sôkriti e ex-presidente da Associação Iakiô : caminho de luta (Foto: Hebe Rios)

A última fala de Pasyma emocionou a todos no carro, e a viagem seguiu em silêncio até que pouco mais adiante aconteceu a parada para o almoço. Um momento planejado como parte da já extensa lista de atribuições da equipe de logística: alertar com antecedência o dono de um dos poucos restaurantes à beira da estrada de que iria receber pelo menos oito pessoas para almoçar. O ideal seria chegar à aldeia antes do fim do dia para começar a acomodar as equipes, montar a barracas, tomar banho e alimentar-se. Por isso, sem demorar muito no almoço, as equipes prosseguiram com o restante da viagem, que estava ainda na metade.

A casa onde ficaríamos na aldeia Nänsêpotiti comportava os motoristas e eventuais trabalhadores que prestavam serviços para os Panará. Rústica, feita de madeira e sem forro, a construção era um convite para a entrada de pequenos animais, como ratos, rãs e morcegos. Fomos aconselhados a dormir dentro de barracas, mantidas sempre fechadas. A rotina noturna precisava seguir o funcionamento do gerador de energia elétrica, desligado às 21h, daí a necessidade de chegar à aldeia durante o dia para organizar a casa. No fim da tarde, quando chegamos a Nänsêpotiti, a circulação de pessoas era pequena, mas a curiosidade nos convidava a caminhar pela aldeia, captando imagens, um plano logo interrompido pela diminuição da luz do sol, que nos obrigava a montar logo as barracas. Aos poucos, todos puderam encontrar um espaço de acomodação dentro da casa, onde também esteve hospedado Murilo, um bioconstrutor que prestava serviços para a aldeia e que, gentilmente, cedeu seu quarto para as equipes. Ele e os motoristas acabaram dormindo na sede da Associação Iakiô, que ficava a poucos metros da casa.

A primeira noite na aldeia foi uma experiência interessante e até divertida. Depois de jantarmos um delicioso peixe com beiju (pão feito com farinha de mandioca), conversamos sobre os desafios por vir. Ao voltar para a casa, um presente para os olhos: ao apagar as lanternas, que iluminavam o caminho, a noite revelou a exuberância do céu Panará. Um mundo de estrelas, satélites em movimento e a Via Láctea pintavam um quadro que raramente quem vive nas cidades tem a oportunidade de observar. O repórter cinematográfico Marcos Botelho Jr. não demorou a flagrar o momento, que envolveu a equipe em uma espécie de competição pelo melhor registro fotográfico das estrelas e constelações. Aquele céu era mais um entre tantos presentes que a natureza nos dava, desde o início da viagem. Era como se dissesse: estou aqui sempre, sou assim, linda, basta ter disposição e estar no lugar certo para me olhar. Passada a euforia com os flagrantes do céu, era hora de fazer o planejamento das ações do dia seguinte, que seria dedicado, principalmente, à gravação da segunda roda de conversa com as estrelas Panará, os tapuntun e tuatun.

O dia seguinte começou cedo para as equipes com o objetivo de organizar as gravações. Depois do café da manhã e com o apoio da pesquisadora Edilaine, o grupo da SEC se dirigiu ao centro da aldeia, sabendo que já havia entre os indígenas uma grande movimentação para a pintura corporal, sinal de que iriam participar de um momento importante, como é tradição. Antes de relatar o encontro com essas pessoas, é importante apresentar algumas características da aldeia Nänsêpotiti, para que se entenda melhor sua rotina de atividades. Ao entrar na área das casas tradicionais, dispostas em um grande círculo de terra batida, pudemos ver diferentes tipos de sementes expostas ao sol para secar.

Os Panará, assim como outros povos indígenas, têm na coleta e venda de sementes uma fonte de sustento. As sementes mais comuns, trocadas entre as próprias aldeias e comercializadas fora delas também, são as de cumaru, açaí e castanha-do-pará. O amendoim produzido por eles também é muito conhecido e procurado. No centro da aldeia, fica a tradicional casa dos homens, um espaço coberto como um galpão, onde os Panará realizam reuniões e rituais. Animais como cães, araras e macacos circulam nessa área.

Durante a gravação de imagens na parte central da aldeia, nossa equipe se aproximou dos Panará que realizavam a pintura corporal e conseguiu ver um ancião sendo preparado para a roda de conversa. Nos apresentamos, pedimos autorização para a gravação da imagem e perguntamos seu nome. A resposta rápida, em voz baixa, nos surpreendeu. Ali estava Akã, a liderança sobre a qual tanto tínhamos ouvido falar e que estávamos ansiosos para conhecer.

Akã não se intimidou com a chegada da nossa equipe, carregando câmeras e celulares, e até incentivou a aproximação. “Pode gravar”, disse. Enquanto tinha o corpo pintado por uma mulher, que depois soubemos ser sua esposa, Akã, um pouco ofegante e se apoiando em uma borduna, respondia com bom humor às perguntas sobre o presente e o passado, contando como viu do avião o território da antiga aldeia, Matupá, tomado pelo garimpo, e o lugar onde os Panará renasceriam como povo, a futura aldeia Nänsêpotiti.

Orgulhoso pela conquista que mudaria o destino geográfico e cultural do próprio povo, Akã bateu no peito e disse: “Consegui, eu consegui”. Referia-se ao fato de ter reencontrado uma antiga área de caça Panará, ainda preservada, onde nasceria a Nänsêpotiti. A fala, em português, apesar de pouco compreensível em alguns momentos, confirmou as impressões formadas a partir de leituras sobre a história das movimentações que culminaram na volta para o território. Akã, uma liderança anciã, um tapuntun, seria para sempre um símbolo da resiliência Panará.

O jovem Krekiô Panará: produção de material audiovisutal
O jovem Krekiô Panará: produção de material audiovisual nas aldeias (Foto: Marcos Botelho Jr.)
O jovem Krekiô Panará: produção de material audiovisutal
O jovem Krekiô Panará: produção de material audiovisual nas aldeias (Foto: Marcos Botelho Jr.)

A conversa não durou muito porque era preciso voltar ao local onde ocorreria a roda de conversa e organizar o cenário para receber os demais tapuntun e as tuatun.  Diferentemente do que havia ocorrido na aldeia Kotikô, a roda agora aconteceria ao ar livre, devido ao grande número de participantes. Parecia que, novamente, a natureza reservava um espaço especial para as palavras lançadas em sua defesa. Em frente à outra casa reservada para a acomodação de parte da equipe de pesquisa, colocaram-se, sob a sombra generosa de uma mangueira, cadeiras em meio círculo, bancos e equipamentos, como câmeras, tripés e microfones, tudo devidamente camuflado por objetos tipicamente indígenas, como cestos, arcos, flechas e bordunas.

Enquanto se davam os preparativos, chegaram perto do repórter cinematográfico Marcos Botelho Jr. a jovem indígena Jôwpôpri e o jovem Krekiô Panará, integrantes do projeto que incentiva a formação de comunicadores entre os indígenas e a produção de materiais audiovisuais. Uma das câmeras usadas nessa iniciativa foi cedida à equipe da SEC, como apoio para gravar a roda de conversa e os jovens queriam acompanhar a gravação.

(Continua …)

Selo saber Panará

FICHA TÉCNICA

Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Hebe Rios
Fotos: Raissa Azeredo e Marcos Botelho Jr.
Vídeos: Marcos Botelho Jr., Bruno Jungmann, Krekiô Panará, Ricardo Abad (drone)
Edição de imagem: Alex Calixto, Paulo Cavalheri, Thiago dos Anjos
Arte: Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Coordenadora audiovisual: Patrícia Lauretti
Coordenação geral:  Álvaro Kassab, Christiane Neme Campos, Laura Freitas Rodrigues

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