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Um artigo publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia apontou que 11% (cerca de 15,5 milhões de indivíduos), da faixa etária entre as pessoas com 18 a 69 anos de idade, sofreram algum tipo de violência psicológica nos 12 meses anteriores à última edição da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) – considerando a semana de referência de 21 a 27 de julho de 2019. No caso dos trabalhadores ocupados, a violência revelou-se maior entre as mulheres, as pessoas de 18 a 29 anos, os pretos e pardos, as pessoas sem cônjuge e as pessoas com renda de até meio salário mínimo.

“Nós somos um país classista, racista, machista, patriarcal e patrimonialista. E todos esses tipos de violência que, historicamente, são constituídos na nossa sociedade, se refletem no trabalho”, afirmou uma das autoras do estudo, a médica Marcia Bandini.

A pesquisa usou dados da PNS, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde para traçar um perfil sobre a violência psicológica praticada contra trabalhadores e também no ambiente de trabalho no Brasil. A publicação resultou de uma parceria entre pesquisadores das áreas da saúde do trabalhador e de epidemiologia, todos integrantes do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.

A médica Marcia Bandini, uma das autoras do estudo: violência no trabalho que se refletem no trabalho
A médica Marcia Bandini, uma das autoras do estudo: violência no trabalho que se refletem no trabalho

A determinação sobre se ocorreu ou não um ato de violência psicológica baseou-se na resposta a uma única pergunta: “Alguém te ofendeu, humilhou ou ridicularizou na frente de outras pessoas?”. Isso representa uma limitação quanto à capacidade dos pesquisadores de medir com precisão esse fenômeno. Por outro lado, a aplicação do questionário da PNS fora do ambiente laboral deu aos entrevistados mais liberdade para responder com sinceridade, defende a estatística e epidemiologista Priscila Bergamo, outra autora do artigo – também assinado por Daniela de Assumpção e Sergio Roberto de Lucca.

Em outro recorte de análise, as pessoas que relataram ter sofrido violência foram questionadas sobre o local da ocorrência e sobre o autor da agressão. Nesse contexto, 11% das pessoas ocupadas responderam ter sofrido esse tipo de ação no período especificamente no local de trabalho. O perfil demográfico era composto majoritariamente de homens, adultos jovens, pardos, com nível médio de ensino e renda entre um e dois salários-mínimos.

O artigo focou a questão da hierarquia de poder e a violência perpetrada por chefes/patrões, que representou 28,8% do total – cerca de 2 milhões de pessoas. Outros agressores foram pessoas desconhecidas e colegas de trabalho, entre outros. Bandini argumenta que a violência no trabalho não ocorreu de forma pontual, mas de forma estratégica, cultural e institucionalizada, no formato do assédio.

Dados podem indicar se tratar de um fenômeno muito mais frequente do que números oficiais informam
Dados podem indicar se tratar de um fenômeno muito mais frequente do que números oficiais informam

Dados públicos de saúde

De acordo com a médica, os dados indicam se tratar de um fenômeno muito mais frequente do que outros números oficiais informam e talvez ainda mais usual do que determinou a própria pesquisa – considerando as interseccionalidades de gênero, classe, raça e etnia e também a naturalização da violência na sociedade. “Isso é algo que está tão enraizado dentro da nossa cultura que, muitas vezes, acontece e a pessoa sequer se dá conta”, disse.

Bandini argumenta que as características do mercado de trabalho brasileiro dificultam pesquisas quantitativas nesse campo. “Em cada dez trabalhadores, em torno de apenas três ou quatro são trabalhadores formais.”

A PNS, um inquérito sobre saúde de base domiciliar, de âmbito nacional, ocorreu nos anos de 2013 e 2019 no Brasil. Trata-se de uma parceria entre o IBGE e o Ministério da Saúde com o objetivo de determinar o estado de saúde, os estilos de vida e a atenção à saúde dos trabalhadores brasileiros (acesso e uso dos serviços de saúde, ações preventivas, continuidade dos cuidados etc.). Os dados permitem realizar análises sobre os trabalhadores tanto por sua abrangência geográfica quanto por englobar diferentes condições de trabalho.

Isso porque a pesquisa considera como pessoa ocupada aquela que, na semana de referência, trabalhou pelo menos uma hora completa de forma remunerada ou sem remuneração direta – contribuindo com a atividade econômica de um membro do seu domicílio ou um parente – ou que tinha um trabalho remunerado do qual estava temporariamente afastado.

“Esse estudo nos dá uma fotografia mais próxima da realidade dos trabalhadores do nosso país que não estão debaixo do guarda-chuva do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], o qual abrange uma pequena parcela da população trabalhadora. A pesquisa traz dados quantitativos para começarmos a olhar um pouco melhor o que está acontecendo”, afirmou Bandini.

Embora divulgados no final de 2020, Bergamo ressalta que os dados da PNS 2019 ainda padecem, no meio acadêmico, de uma subutilização. “Há muitas outras possibilidades de estudos que podem ser realizados nos âmbitos da iniciação científica, do mestrado e do doutorado. Nosso papel, enquanto universidade pública, é também produzir informações para o país com dados de pesquisas realizadas com recursos públicos.”

As autoras avaliam como positiva a parceria entre os diferentes campos de estudo da FCM: Bergamo, que é docente na área de epidemiologia, agregou sua expertise com análises quantitativas de dados epidemiológicos à capacidade analítica qualitativa dos demais autores do trabalho.

Os pesquisadores agora aguardam com expectativa a divulgação da PNS 2025 – prevista para o ano que vem –, na esperança de conseguir compor um cenário comparativo e investigar também outros tipos de violência.

A violência revelou-se maior entre as mulheres entre 18 a 29 anos
A violência revelou-se maior entre as mulheres entre 18 a 29 anos

Fatores psicossociais no trabalho

Esse tipo de violência pode se manifestar por meio de ameaças ou agressão verbal, por exemplo. Para Bandini, o Brasil está 40 anos atrasado quando se leva em conta a discussão global sobre os fatores psicossociais envolvidos no trabalho, referentes a questões que afetam positiva ou negativamente a saúde dos trabalhadores.

As interações interpessoais figuram entre esses fatores, atuando como agravante para o adoecimento e o sofrimento psíquico – com impactos, até mesmo, no aparecimento e na progressão de doenças osteomusculares. “Temos aprendido que o estresse contínuo, o aumento do cortisol, as tensões musculares constantes vão criando um processo inflamatório generalizado que aumenta o risco de lesões mecânicas. Como acontece, por exemplo, no caso de tendinites e na síndrome do túnel do carpo”, explicou Bandini.

O governo brasileiro publicou, em 1999, a primeira versão da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho. Em 2023, o Ministério da Saúde divulgou uma primeira atualização da lista, incluindo fatores relacionados à gestão organizacional, a características das relações sociais no trabalho, à violência e ao assédio moral/sexual, entre outros.

Neste ano, os fatores de risco psicossociais no ambiente de trabalho passaram a fazer parte do Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO) – a princípio, em caráter educativo –, ao lado de riscos físicos, químicos, biológicos, de acidentes e ergonômicos. Essas informações integram a Norma Regulamentadora Nº 1 (NR-1), que orienta empresas no gerenciamento de riscos ocupacionais.

Bandini afirmou ser papel da universidade reportar essa situação para a população e, também, incentivar movimentos sociais e sindicais a reivindicarem melhores condições de trabalho. “A dignidade é um princípio básico da nossa Constituição [Federal]. Quando estamos falando em trabalho digno, estamos falando sobre garantir o direito de todo cidadão e cidadã deste país”, disse.

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