


Um entrelaçamento de saberes
Um entrelaçamento de saberes

(Continuação)
Antes de dar continuidade à cronologia dos dias vividos entre os Panará, é preciso ressaltar aspectos do planejamento da viagem, que foram decisivos para o bom andamento da reportagem, além das situações pitorescas ocorridas durante sua realização.
Nas reuniões preparatórias com a professora Cassiana Montagner nos foi contado como se deu a aproximação entre as áreas de pesquisa. Uma reportagem publicada pelo Jornal da Unicamp, em março de 2023, de autoria do repórter Tote Nunes, com fotos de Antonio Scarpinetti, apresentava uma pesquisa de doutorado orientada por Montagner no Laboratório de Química Ambiental do Instituto de Química (IQ), identificando a presença de 38 contaminantes emergentes nos rios da Bacia PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí). Logo depois da publicação da reportagem, a professora recebeu o convite da doutoranda do Instituto de Geociências (IG), Zaira Moutinho, para participar da pesquisa engendrada pela Associação Iakiô na terra indígena Panará. Montagner aceitou-o prontamente e foi programada a primeira coleta de amostras, realizada em agosto de 2023, período da seca.
A professora voltou ao território Panará em janeiro de 2024 a fim de realizar, no período da cheia, uma segunda coleta de amostras da água do rio e de afluentes. Durante sua estadia na aldeia Nänsëpotiti, chamou atenção a visita do ancião Akã, uma das lideranças mais importantes do povo Panará e um dos integrantes do grupo que, na década de 1990, sobrevoou a região em busca de um lugar para transferir quem havia sido levado para o Parque Indígena do Xingu (PIX).

O sobrevoo, viabilizado pelo secretário executivo do Instituto Socioambiental (ISA), André Villas-Bôas, pelo antropólogo norte-americano Steve Schwartzman, pela rede britânica BBC e pela Rainforest Foundation, dos EUA, resultou da vontade incessante de voltar para o território original, depois que os Panará foram arrancados da região do Rio Peixoto de Azevedo (MT) dois anos após o primeiro contato, no período das ações desenvolvimentistas da ditadura militar na Região Centro-Oeste (1975). A transferência forçada para o PIX foi realizada para atender aos interesses políticos e econômicos de grandes empresários, especialmente durante a abertura da rodovia Cuiabá-Santarém (BR 163). “Os Panará os hostis, uma “pedra no caminho” como metaforicamente é trazido em vídeo retratando a abertura da BR-163”. (Acesse a tese Quando o réu é o Estado, de Deyvisson Felipe Batista Rocha)
Antes do avanço do branco sobre suas terras, os Panará somavam em torno de 700 pessoas vivendo em um território correspondente a pelo menos 3 vezes mais do que o demarcado hoje nos municípios de Guarantã do Norte (MT), Matupá e Altamira (PA). O extermínio em curso na época, por conta de doenças transmitidas pelos brancos e da violência da invasão das terras pelo garimpo e para a construção da BR 163, havia reduzido o povo Panará a pouco mais de 70 indivíduos.
Desde a transferência para o PIX, suas lideranças buscavam o caminho de volta porque o povo não se adaptava à vida longe do território original. “O desmatamento e o sarampo se espalharam muito rápido. Poucos Panará sobreviveram. No Xingu a língua era diferente. Quando os Panará foram pra lá, não tinham lugar para sustentar suas famílias. A terra era diferente. Os Panará têm conhecimento da terra”, contou um dos anciãos entrevistados na aldeia Kotikô.

Durante o sobrevoo do território devastado pela construção da estrada e pelo garimpo, Akã identificou uma área de floresta preservada, próxima ao Rio Iriri, que “ainda não tinha sido comida pelos brancos”, como gosta de dizer.
Depois de longas incursões por terra, reuniões entre lideranças indígenas e representantes do PIX e do ISA, começou, finalmente, o processo de construção de uma nova aldeia, agora fora do Xingu, no território Panará avistado e ainda intacto.
A volta para parte da terra original começou em 1995 e concluiu-se em 1997, com a construção da aldeia Nänsêpotiti. Sabendo de toda essa história, a visita de Akã ao alojamento da equipe de pesquisa gerava admiração, respeito e ao mesmo tempo a certeza, de que a fala daquele líder tinha que ser traduzida e documentada, afinal, os anciãos ofereciam os poucos testemunhos vivos do processo de mudança para a nova aldeia e das alterações identificadas no rio Iriri ao longo de décadas de contato diário, desde a aproximação dos irmãos Villas-Bôas, até hoje.
A partir dessa constatação, idealizou-se o convite feito, posteriormente, para que a equipe da Secretaria Executiva de Comunicação (SEC) da Unicamp produzisse o documentário audiovisual sobre a pesquisa em curso e a história oral dos Panará.
Ao longo da gravação dos testemunhos, foi possível identificar em diversas ocasiões o saber Panará, fruto da observação diária da natureza. A pesquisadora Edilaine de Freitas Lima, mestranda orientada por Montagner e membro da equipe responsável pela coleta das amostras de água, interpretou com clareza esta habilidade dos indígenas, principalmente após um fato ocorrido durante a gravação das entrevistas.
Enquanto o local para as gravações era preparado, um Panará avisou a equipe que entre 10h e 11h da manhã começaria a ventar (apontando a direção em que o vento sopraria), o que poderia atrapalhar o trabalho, previsão essa que se confirmou e inspirou-a a relatar o impacto que a visita à aldeia provocava em sua visão de mundo como pesquisadora; momento semelhante a uma síntese do que documentávamos. “O cientista é um procurador de padrões. Aqui, conversando com eles, eu vi que, além dos meus limites de detecção em laboratório, eles conseguem observar as alterações nos rios, eles conhecem esses rios há muitos anos, sabem como era a situação de vazão, de qualidade. E eles estão observando essa depreciação”, disse Lima.
A doutoranda Telma Oliveira, que, assim como Lima, vivia aquela experiência pela primeira vez, também identificou o conhecimento fundamentado na observação diária do campo. Experiência próxima do que ela havia vivido durante a infância na zona rural, onde seus pais interpretavam os sinais da natureza. As pesquisadoras, enquanto orientandas de Montagner, também puderam acompanhar parte da investigação sobre as causas da mortandade de peixes no Rio Iriri em 2017, fato que deu início à abertura de poços artesianos nas aldeias.
Rotina das mulheres Panará, tema do primeiro roteiro elaborado (Foto: Raissa Azeredo)
A intenção de otimizar a captação de imagens e entrevistas durante a viagem e estadia entre os Panará motivou a criação de um roteiro para o documentário, elaborado por Moutinho e aprovado pelos Panará. Junto ao cronograma de atividades diárias, esse roteiro seria o ponto de partida para nortear as diárias de gravações. Ademais, em uma viagem como essa, envolvendo várias pessoas em um local com pouca infraestrutura, temperaturas altas, animais selvagens e acesso por meio de estradas de terra precárias, muitos imprevistos podem acontecer. O risco de um carro quebrar, de um pneu furar ou de um acidente é grande.
No trajeto percorrido em cerca de quatro horas, entre a cidade de Guarantã do Norte (MT) e a aldeia Nänsêpotiti (PA), por exemplo, a bateria do carro em que estava parte da equipe derreteu, segundo contou Montagner, provocando atraso na sua chegada.
Para ficar quase uma semana na terra indígena, era preciso levar alguns mantimentos, além de todos os equipamentos de coleta das amostras, pertencentes ao Laboratório de Química Ambiental do IQ e os de gravação audiovisual, da SEC. O planejamento, assim como a logística, portanto, nunca foram simples nem corriqueiros, sendo o roteiro e o cronograma partes desse processo de organização das atividades de pesquisa e reportagem.
Ao processo de planejamento, elaboração de roteiro e cronograma, foi acrescentada a documentação obtida pelas equipes por meio do Programa Saúde do Viajante, da Unicamp, para atender às determinações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Em terra indígena, é exigida a carteira de vacinação atualizada contra gripe, covid-19 e hepatite A, além de um atestado médico que assegure o bom estado de saúde do visitante.
A mediação entre pesquisadoras, equipe de reportagem e os representantes do povo Panará foi realizada pela equipe da Associação Iakiô, que junto ao ISA tem captado recursos, por meio de projetos, e executado ações de monitoramento da biodiversidade na terra indígena Panará.
Mudança no roteiro original
Entre os colaboradores da Iakiô estavam Raissa Azeredo, antropóloga e fotógrafa e Deyvisson Rocha, que à época era contratado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e trabalhava na assessoria técnica da associação, apoiando-a na captação de recursos e na gestão dos projetos. No caso específico da proposta de monitoramento da qualidade das águas do Rio Iriri, ação idealizada pela Iakiô, o recurso vinha do projeto Legado Integrado da Região Amazônica (Lira), vinculado ao Fundo Amazônia.
Partimos na segunda-feira, dia 1º de julho de 2024, saindo de Campinas por volta das 15h, em um voo até o Mato Grosso. No aeroporto de Sinop (MT), duas horas depois, nos aguardavam dois motoristas da Iakiô, que nos levaram até Guarantã do Norte (MT) pela rodovia BR-163. Era fim de tarde e a maior parte do trajeto foi feita à noite, durante cerca de três horas, em uma pista simples, sem acostamento e muito movimentada, com tráfego pesado de caminhões e conhecida pelos acidentes graves. Seguimos sob a direção segura, firme e cuidadosa dos motoristas da Associação Iakiô até um hotel, a espera da partida para a terra indígena Panará.
O dia seguinte, apesar de todo planejamento, nos aguardava com um imprevisto; primeira mudança no cronograma original. Não iríamos direto para a aldeia Nänsêpotiti, mas sim para a aldeia Kotikô, a cerca de duas horas de Guarantã do Norte, onde seria gravada a primeira roda de conversa com anciãos e anciãs. Essa decisão foi tomada pela equipe de logística da Iakiô e pesquisadoras porque seria difícil reunir todos eles em uma só aldeia. A estrada de terra era precária, o que dificultava a locomoção por conta da idade avançada de alguns.
(Continua …)
Primeiro capítulo

FICHA TÉCNICA
Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Hebe Rios
Fotos: Raissa Azeredo e Marcos Botelho Jr.
Vídeos: Marcos Botelho Jr, Bruno Jungmann, Krekiô Panará, Ricardo Abad (drone)
Edição de imagem: Alex Calixto, Paulo Cavalheri
Arte: Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Coordenação: Álvaro Kassab, Christiane Neme Campos, Laura Freitas Rodrigues