

Pesquisa e memória em terras indígenas no Centro-Oeste brasileiro

A terra indígena Panará, localizada em parte dos Estados do Mato Grosso e do Pará, nos municípios de Guarantã do Norte (MT), Matupá (MT) e Altamira (PA), é o principal cenário de uma pesquisa interdisciplinar envolvendo trabalhos de mestrado e doutorado, sob a orientação da professora Cassiana Montagner, coordenadora do Laboratório de Química Ambiental (LQA) do Instituto de Química (IQ), e de um doutorado sob a orientação do professor Raul Reis, do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.
Estar entre os Panará mostrou-se necessário para investigar os riscos que o modo de vida deles corre diante da possibilidade de contaminação da sub-bacia e dos afluentes do Rio Iriri, cujo nome indígena é Nänsêpotiti.
O Rio Iriri mata a sede e a fome dessa população, permite-lhe o banho e o lazer e renova os laços que sustentam a cultura Panará. A contaminação desse recurso hídrico poderia colocar a perder tudo que dá vida às sete aldeias dos Panará, onde hoje vivem quase 800 pessoas.
No entanto, segundo Montagner, precisamos entender também as mudanças que o rio vem sofrendo por meio de outro saber, o dos Panará. Trata-se do conhecimento que não consta em livros, pois vive na história oral, sob o manto da memória de anciãos e anciãs. Em meio aos esforços para registrar essa história, que corre o risco de se perder, a equipe de pesquisa decidiu compartilhar com a Secretaria Executiva de Comunicação (SEC) da Unicamp o desafio enfrentado, e isso a partir da gravação de depoimentos dos anciãos e anciãs Panará.
Convite aceito, a equipe da SEC se juntou às equipes do IQ e do IG, compostas por Montagner, pela doutoranda Telma de Oliveira Zacharias, pela mestranda Edilaine de Freitas Lima e pelo pesquisador colaborador Theodore Burdick Henry, para visitas ao território Panará, realizadas entre os dias 1º e 7 de julho de 2024 e entre os dias 24 de setembro e 1º de outubro daquele mesmo ano.
A Associação Iakiô, organização indígena Panará idealizadora dos projetos de preservação e monitoramento dos mananciais, é a principal executora e financiadora da primeira etapa da pesquisa, por meio do projeto Legado Integrado da Região Amazônica (Lira). Nos próximos três anos um projeto da Conservação Internacional (CI), uma organização não governamental, dará continuidade ao monitoramento do Rio Iriri com a equipe da Unicamp. Montagner conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Eurofins Brasil.
Durante a realização das gravações, testemunhar as histórias alicerçadas na experiência Panará e compreender as linhas de investigação da pesquisa ofereceram à equipe da SEC uma chance de entender melhor os erros do passado e as ações necessárias no presente para construir um futuro de mais acertos, dentro da hoje tão contraditória relação entre o homem e o meio ambiente. De toda forma, particularmente na sua chegada à terra indígena, a equipe sentiu-se invasora, mesmo sabendo ser bem-vinda.
Uma das hipóteses a justificar esse sentimento, talvez se sustente sobre o fato de o povo Panará – contatado pela primeira vez em 1973 e ainda hoje separado do mundo urbanizado por estradas precárias – ser alvo até os dias atuais de olhares curiosos e de estranhamento, como se fosse um grupo de estrangeiros no “território Brasil”.
E se fosse o contrário? Teríamos a mesma generosidade se alguém viesse até nós, até nosso território, nossa casa, para pesquisar nossa fonte de vida e sustento e os desafios enfrentados? Teríamos a mesma tolerância com os olhares de estranhamento ou admiração, mesmo se tratando de “invasores” bem intencionados?
O mergulho nas águas do Rio Iriri e a imersão nas terras Panará revelaram-se também um caminho para o interior pouco desbravado do próprio indivíduo humano. Quem mostrou esse caminho foi quem soube, desde sempre, ouvir e ver a natureza também como um ser, um ser que fala com o vento, aquece com o Sol, refresca com a chuva, alimenta com o peixe, a caça e a fruta, embeleza com as estrelas e a flor, cura com as plantas, transporta com o próprio leito.
A oportunidade de compreender o ser e o saber Panará foi, por isso, um privilégio para quem valoriza o conhecimento como causa e princípio, principalmente aquele que afeta o interior, seja o humano ou o geográfico. O reconhecimento do saber ancestral ofereceu a oportunidade de identificar a conexão entre a essência humana e a complexidade de sua interação com o meio ambiente.
Ao documentar a pesquisa, a equipe da SEC deparou-se com a necessidade de aprender lições tão simples quanto complexas para o “homem branco”, como dizem os indígenas. Depois da partida, de volta à Unicamp e talvez menos invasora e mais aprendiz, a secretaria agora convida os leitores a conhecerem essa jornada ao interior das terras e do povo Panará.
A experiência do jornalismo da SEC com os Panará começou a se desenhar no LQA. Em novembro de 2023, ao fazer uma reportagem sobre a contaminação da bacia da Região Metropolitana de Campinas (Bacia PCJ – Piracicaba, Capivari, Jundiaí) por agrotóxicos, fármacos e outros contaminantes emergentes, conhecemos Montagner e alguns de seus orientandos.
A professora mostrou-se satisfeita com o resultado da reportagem e, depois de alguns meses, entrou em contato para fazer o convite da viagem à terra indígena Panará, com a intenção de documentar a investigação sobre os indícios de contaminação da sub-bacia do Rio Iriri. O diretor de jornalismo da SEC, Álvaro Kassab, sugeriu a permanência da equipe de reportagem, em terra indígena, por pelo menos uma semana, e isso devido às atividades que seriam realizadas, conforme havia relatado Montagner, em visita à SEC. Aceito o convite, começava, então, cerca de quatro meses antes da partida, o processo de planejamento e logística da viagem.
Antes de avançar no relato desta jornada, cabe comentar o impacto pessoal que a experiência proporcionou e os questionamentos que suscitou: por que nos cercamos de preocupações e necessidades das quais, literalmente, não precisamos para viver bem? Os desejos, os sentimentos e até os objetos (penduricalhos de toda ordem) do nosso mundo urbano criam uma ilusão de bem-estar e poluem a visão e a mente, reduzindo a percepção do que é essencial. Com o pensamento e o coração leves entre os Panará, ficamos surpresos ao nos darmos conta do peso excessivo da nossa própria cultura.
Nas aldeias Panará visitadas, vivenciamos a simplicidade nas ações diárias, ao mesmo tempo em que vislumbramos a “complexidade do viver simples” (como disse uma das parceiras do projeto, Raissa Azeredo) porque também atravessado pelas dificuldades, ao lidar com a natureza bruta e a necessidade de sobrevivência, tudo isso longe de uma infraestrutura urbana.



FRONTEIRAS SOB AMEAÇA CONSTANTE
Além do cultivo diário da terra e da busca pela caça, os Panará precisam enfrentar as demandas que a relação inevitável com o mundo do capital impõe, seja na cidade ou no campo. As estradas que dão acesso às sete aldeias – Canaã, Kotikô, Nänpôôrö, Sönkâränsän, Sönkwê, Kresã e Nänsêpotiti – revelam a cada quilômetro o avanço do agronegócio de forma indiscriminada, esgarçando os limites que deveriam separar as áreas de cultivo do território indígena e chegando às margens de suas águas, que passam a receber os resíduos da lavoura e da pecuária.
Além das demandas por sobrevivência, os Panará, escorraçados violentamente de seu próprio território 50 anos atrás, ainda enfrentam muita discriminação, principalmente da parte dos que defendem a expansão da monocultura como pilar da economia e da organização social. Ganhar a ação indenizatória por danos morais e materiais, movida na década de 1970 contra a União e a hoje chamada Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), não foi suficiente para mudar esse quadro.
Uma experiência vivenciada em um passado relativamente recente e que ainda precisa ser reafirmada no presente diante das constantes ameaças à terra Panará, como as resultantes de um manejo inadequado ou intensivo de produtos na lavoura, que compõem uma das hipóteses em investigação nas pesquisas.
Cada cultura precisa de um tipo de terra diferente, explica Montagner, e no momento do plantio é feito o manejo do solo, com a aplicação de todos os nutrientes e fertilizantes necessários, cal para corrigir o pH e os agrotóxicos chamados pré-emergentes. Quando a cultura já está crescendo e surge alguma praga, aplica-se agrotóxico, muitas vezes, por pulverização ou via aérea. Em situações assim, o produto acaba se dispersando também para outras áreas (incluindo a floresta) e pode causar danos ambientais.
Há ainda os agrotóxicos persistentes, que podem ficar no solo durante muitos anos, e outros mais solúveis, carregados para os rios após chuvas ou em casos de excesso de irrigação, percorrendo longas distâncias, o que mostra o grau de complexidade envolvido no estudo da sub-bacia do Iriri. O manejo adequado do solo, que significa o uso correto e controlado desses produtos, representa uma condição essencial, segundo a pesquisadora, para evitar uma série de desequilíbrios, na vegetação, no solo, nas águas ou entre os animais.
Indígena pesca no rio Iriri: possibilidade de contaminação ameaça modo de vida das sete aldeias Panará
Tradição ameaçada
A cada explicação sobre as dificuldades enfrentadas por quem vive em território indígena, crescia a curiosidade sobre os ensinamentos resultantes da complexidade desse viver, em que tudo se compartilha: se há pobreza, a pobreza é para todos; se há riqueza, a riqueza é para todos. Esta realidade é colocada à prova, devido às mazelas sociais e econômicas geradas pelo mundo que invade as aldeias. As ameaças não vêm apenas do avanço sobre o território e da possibilidade de contaminação dos rios. A cultura do consumo, difundida de forma cada vez mais rápida pela internet, tem avançado sobre os costumes, a tradição e a cultura Panará, como afirmou a anciã Piaká, em entrevista gravada na aldeia Nänsêpotiti.
Piaká defendeu o trabalho da mulher na roça como parte da cultura que precisa ser preservada e demonstrou muita preocupação com as novidades ilusórias oferecidas pelo mundo urbano. A anciã falou ainda sobre as mudanças observadas recentemente no regime das chuvas, com o aumento do período de seca e queda na produtividade da roça, em especial em 2023.
Ao explicar o lado bom e o lado ruim da cultura não indígena, Piaká contou com a tradução de Pasyma Panará. Importante observar que a oralidade nem sempre é passível de tradução literal e, mais do que entender as palavras, as frases e os períodos, é importante compreender nas repetições de palavras, frases e períodos, assim como nas pausas e silêncios, todo o sentido do que se diz.
Completam o quadro da invasão de valores contrários à cultura Panará, os expoentes do capital nos Estados do Mato Grosso e do Pará, representados principalmente por grandes empresas agrícolas, que precificam a terra e tudo o que vem dela, desidratando as iniciativas sustentáveis e ambientalmente responsáveis, como as de preservação de mananciais e matas ciliares.
Esta realidade também foi narrada por Pasyma, filho de Sökriti, primeiro Panará contatado pelos irmãos Villas-Bôas, em 1973, e entrevistado na aldeia Nänpôôrö. A foto que registra o primeiro encontro com o ‘homem branco’ causa impacto até hoje e correu o mundo na época. Um flagrante histórico do repórter fotográfico Pedro Martinelli, que trabalhava na sucursal de O Globo em São Paulo e cobria a expedição da Funai encarregada de atrair os Panará, chamados pelos Kayapó de Kranhacãrore, “que significa ‘cabeça cortada redonda’, uma referência ao corte tradicional de cabelo que identifica os Panará”, um costume mais tarde abandonado (trecho do livro Panará – A Volta dos Índios Gigantes, de 1998).

CONTINUA …

FICHA TÉCNICA
Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Hebe Rios
Fotos: Raissa Azeredo e Marcos Botelho Jr.
Vídeos: Marcos Botelho Jr, Bruno Jungmann, Krekiô Panará, Ricardo Abad (drone)
Edição de imagem: Alex Calixto, Paulo Cavalheri
Arte: Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Coordenação: Álvaro Kassab, Christiane Neme Campos, Laura Freitas Rodrigues