
A descoberta de amostras de moléculas orgânicas de cadeia longa na superfície de Marte por meio do robô Curiosity, revelada no fim de março de 2025 pela agência espacial dos Estados Unidos (Nasa), moveu a comunidade científica por conta da possibilidade de representar a existência de vida no passado do planeta vermelho. Na ocasião, divulgou-se o achado dos hidrocarbonetos decano, undecano e dodecano em rochas monitoradas pelo veículo na cratera Gale. Estes compostos possuem 10, 11 e 12 átomos de carbono, respectivamente.
O professor titular do Departamento de Geologia e Recursos Naturais (DGRN) do Instituto de Geociências da Unicamp (IG), Alvaro Penteado Crósta, no entanto, recomenda cautela quanto à especulação sobre a origem do material encontrado. “Embora possa ser uma evidência indireta da existência pretérita de vida em Marte, também pode ser algo produzido por processos geológicos, como, por exemplo, a interação entre fluidos hidrotermais devido ao vulcanismo, fenômeno este que também ocorreu no planeta”, explica. “A descoberta sem dúvida é fantástica, mas, por ora, trata-se somente de um passo a mais na busca por bioassinaturas”, afirma.
Bioassinaturas representam indícios passados da presença de vida em determinado lugar no espaço, geralmente consistindo em vestígios de atividade biológica. No caso dos compostos recém-encontrados em Marte, não é possível determinar quem ou o que os criou por limitações próprias do robô Curiosity — um laboratório móvel com instrumentos com tecnologias de mais de uma década e meia atrás e que está em operação no Planeta Vermelho desde 2012 — ou pela necessidade de transporte das amostras para serem analisadas em laboratórios mais bem equipados na Terra.
Assista ao vídeo produzido pela Nasa:
As moléculas de decano, undecano e dodecano em Marte têm relevância porque são compostos geralmente derivados de ácidos graxos, o que aumentaria a chance de serem oriundos de seres vivos. “Na comparação com outros materiais que já haviam sido identificados em Marte como o metano ou o clorobenzeno, a possibilidade é maior, mas não é possível ainda enunciar com certeza que sejam provenientes de organismos vivos”, diz Crósta.
Confiante no trabalho paulatino em conjunto para desvendar os mistérios de Marte, Crósta lembra a importância de outro experimento em atividade na superfície marciana. “O Perseverance, por exemplo, foca um lugar bem diferente em relação ao Curiosity, pois investiga o delta de um rio onde há sedimentos depositados. Isso sugere que, ali, em um momento remoto, havia muita água”, destaca.
O robô, em atividade desde 2021 na cratera marciana Jeziro, ainda não encontrou moléculas orgânicas tão grandes como as do Curiosity, mas possui uma vantagem na comparação com o parceiro de buscas. “O Perseverance coleta amostras por meio de uma sonda, colocando o material encontrado em tubos lacrados, que por sua vez são deixados para serem trazidos à Terra assim que possível”, afirma. Contudo, o transporte ainda deve demorar a acontecer por conta dos cortes recentes de até 50% na verba destinada à Nasa, confirmados no começo de maio pela Casa Branca, ao anunciar a proposta de Orçamento dos Estados Unidos para 2026.
Cautela como aliada
Apesar da expectativa por parte do público geral, Crósta elogia o zelo dos cientistas ao abordar a questão na imprensa ou em outros meios de comunicação. “O que se descobriu não pode ser considerado de forma alguma uma confirmação de que houve, no passado, vida em Marte. E, entre quem estuda de fato este tipo de fenômeno, não há a interpretação de que sejam ligadas à vida. A especulação equivocada, se há, não parte da comunidade científica”, afirma.
O rigor na condução das pesquisas está presente desde o início, quando a Nasa escolheu as duas crateras marcianas em questão para investigações de bioassinaturas por representarem possíveis ambientes aquáticos no passado.

Isso se sabe por conta do trabalho de sensores remotos operando a partir de satélites que informam a composição mineralógica e química da superfície vasculhada à distância — valendo-se da vantagem, na comparação com a Terra, da ausência de atmosfera no planeta marciano. Crósta acredita que, no futuro, estes locais poderão oferecer vestígios ainda mais impressionantes do passado de Marte.
“Há a possibilidade de encontrarmos algo além dos compostos orgânicos: fósseis de seres vivos, como bactérias. Esta é a grande virtude do Perseverance, essa capacidade de armazenar essas amostras de rochas para que as analisemos aqui”, comenta.
Participante de um projeto que busca evidências de vida no passado de Titã, a maior das luas de Saturno, o pesquisador contextualiza a incidência de compostos orgânicos no Sistema Solar. “Este satélite tem grande quantidades desse tipo de material, a atmosfera tem elementos orgânicos, há chuvas de metano, lá existe metano em estado líquido”, enumera. “Apesar de todo esse potencial, ainda precisamos de cautela, porque todos esses fenômenos também podem ter sido gerados por processos alheios a qualquer ser vivo.”, alerta
O professor também considera, além de Marte e da lua Titã, outros satélites gelados de Júpiter e Saturno como lugares com potencial para pesquisas dessa natureza. “As luas geladas desses dois planetas gigantes têm muita água e compostos orgânicos, sem falar da existência de oceanos aquáticos logo abaixo de grandes capas de gelo na superfície dos satélites. Oceanos com sais e água são, exatamente, os ambientes nos quais a vida começou na Terra”, explica.
A Nasa tem a previsão de lançar o veículo Dragonfly (libélula, em inglês) para viajar a Titã a partir de 2028, caso os cortes orçamentários não afetem o cronograma da agência. “Essa missão contará com um helicóptero grande, pois essa lua tem atmosfera, possibilitando os voos desses equipamentos. É como se fosse um veículo como o Perseverance, mas que consegue voar e planar, carregando um laboratório com diversos instrumentos para pousar em alguns locais como, por exemplo, as cercanias de uma grande cratera”, finaliza.
