Unicamp divulga panorama sobre
representatividade de
gênero na produção científica
Unicamp divulga
panorama sobre
representatividade de
gênero na produção científica
De modo geral, há uma sub-representação feminina na produção científica, composta por 58% de publicações provenientes de homens e 42% de mulheres

Um estudo inédito aborda a representatividade de gênero na produção científica da Unicamp, investigando disparidades em questões como número de publicações, impacto dos trabalhos e a posição da autoria a partir da base de dados Scopus, no período de 2019 a 2023. O artigo também mediu a desigualdade nas áreas de conhecimento e a relação com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) bem como a taxa de sucesso na aprovação de financiamento para projetos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Os achados corroboram diferenças estruturais entre homens e mulheres na área acadêmica, e os autores sugerem medidas para equilibrar a balança.
De modo geral, há uma sub-representação feminina na produção científica, composta por 58% de publicações provenientes de homens e 42% de mulheres. Os resultados apontaram uma predominância masculina nos campos das ciências físicas (33% de produções com autoria feminina) e sociais (39%), áreas com a maior disparidade de gênero. Há maior equilíbrio de produções nas áreas de ciências da saúde e da vida (51% em ambos os casos). A participação feminina é predominante na área multidisciplinar (53%).
Detalhadamente, as mulheres destacam-se em campos como ciências biológicas e agricultura, imunologia e microbiologia, farmácia, medicina veterinária, enfermagem e psicologia. Foi identificada uma maior equidade entre os gêneros na medicina e na neurociência. Por outro lado, a desigualdade é mais visível na matemática, na ciência da computação, na engenharia, na energia, na administração e na economia, por exemplo. Para o diretor do Sistema de Bibliotecas da Unicamp (SBU) e coautor do artigo, Oscar Eliel, os resultados servem para corroborar a percepção sobre a presença do machismo na sociedade, ainda hoje. “Esse resultado pode levar as pessoas a pensarem: ‘Até na academia a gente vê esse tratamento distinto’, gerando na sociedade uma normalidade equivocada sobre essa situação.”

Parceria PRP e SBU
A motivação para o artigo – publicado na última semana pela editora Taylor & Francis, no jornal Cogent Education, volume 12 (2025) – surgiu a partir da parceria entre a PRP e o SBU, durante a elaboração de um relatório sobre a produção científica geral da Universidade, quando se identificou o viés de gênero. Trata-se de uma temática que ganhou atenção mundial na última década. Contudo há ainda poucos estudos brasileiros sobre o assunto. A expectativa é de que os resultados sirvam como base para a elaboração de estratégias voltadas à mitigação do problema. “Cada vez mais estudos como esse devem fazer parte da inteligência central da Universidade. Os números devem ser analisados para que sejam escolhidas as políticas corretas, embasadas na cientometria [área que estuda a produção, disseminação e impacto da ciência, utilizando métodos quantitativos e qualitativos para avaliar o progresso científico]”, aponta a pró-reitora de Pesquisa, Ana Maria Frattini.
Para a professora Marilda Bottesi, assessora especial do Grant Office da Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) e uma das autoras do trabalho, esse pode ser o pontapé inicial para desdobrar as descobertas em novas pesquisas, que devem ser estimuladas em diversas áreas da Universidade. “Essa diferença que existe hoje na ciência é nociva para a sociedade como um todo. A sociedade deixa de se beneficiar com cabeças pensantes competentes. Precisamos tentar reverter isso”, afirmou. O trabalho já inspirou o desenvolvimento do projeto Mais Mulheres na Ciência, proposto pela PRP, aprovado no Conselho de Orientação do Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (Faepex) e passível de implementação.
Segundo Frattini, esse novo projeto busca auxiliar as mulheres a avançarem na sua trajetória profissional – uma vez que a participação feminina é maior no nível inicial da carreira docente da Unicamp. “Para tornar o caminho mais fácil, nada melhor do que a internacionalização. Isso atrai grupos de pesquisas mais robustos e também a possibilidade de elas serem coordenadoras de grandes projetos com as suas redes. Então a ideia é que a pesquisadora possa sugerir uma viagem internacional, com mobilidade de sua equipe para o início de tratativas de trabalhos em conjunto com outras universidades”, explica.
A própria pró-reitora, uma mulher em um cargo de liderança, se considera um caso de tratamento diferenciado. Isso porque, depois que assumiu a diretoria executiva da Agência de Inovação da Unicamp (Inova Unicamp), em 2021, e recentemente a PRP, Frattini passou a receber mais convites para parcerias científicas. “Mulheres precisam tirar essa ‘trava’ de assumir posições de liderança, de se acharem menos capazes. Nesses cargos, você tem olhares muito mais críticos por ser uma líder mulher do que um homem. Hoje, percebo a importância de ser um exemplo para outras mulheres.”
Entre as ações que a Unicamp já desenvolve para tratar dessa questão, está o critério de equidade disponível no edital do Programa de Incentivo a Novos Docentes (Pind), que prevê a extensão do período de elegibilidade para docentes em caso de maternidade – dois anos para cada filho. Também foi elaborado, pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos, um manual de boas práticas com recomendações para a realização de concursos públicos visando à carreira docente, como a composição de bancas avaliativas diversas. Além do auxílio de políticas de igualdade propostas por agências de fomento à pesquisa, disse Bottesi.

Produção desigual
O estudo utilizou a base de dados de resumos e citações de artigos científicos Scopus no quinquênio 2019-2023, totalizando a análise de 25.138 publicações com autores vinculados à Unicamp, e também obteve informações da Fapesp. No artigo, os pesquisadores destacam o potencial do uso de inteligência artificial para a inferência de gênero: o ChatGPT (OpenAI) foi a plataforma escolhida para gerar uma classificação binária (feminino ou masculino) baseado no nome completo dos autores das publicações.
Além do uso da IA generativa, houve também um esforço na verificação dos dados: “A maioria dos estudos utiliza o método de inferência binária, empregando técnicas de processamento de linguagem natural, e os seus autores confiam nos resultados. Nós utilizamos a IA generativa devido a estudos recentes divulgados pela Scientometrics indicando que essa abordagem traz resultados superiores às ferramentas tradicionalmente utilizadas. Além disso, tomamos o cuidado de verificar corretamente – inclusive manualmente nos casos incertos – porque, mesmo a Scopus sendo uma grande base, encontramos alguns casos com nomenclatura errada. Por exemplo, a base de dados afirmara que um(a) autor(a) era da Unicamp, mas na realidade não era. Então fizemos esse filtro, não somente extraímos os dados”, esclarece o assessor de projetos do SBU, Francisco Foz, outro autor do trabalho. As análises estatísticas e cientométricas foram conduzidas utilizando a linguagem de programação Python e a biblioteca open source SciPy.
Ainda que essa metodologia seja comum na cientometria, os autores reconhecem a sua limitação, que pode levar à classificação incorreta principalmente de pessoas não binárias, de gênero neutro ou com nomes incomuns – em especial devido à falta de dados precisos sobre o gênero dos autores, o que poderia ser sanado por meio de autodeclaração. Eles afirmam a necessidade de se endereçar esse desafios nas pesquisas de gênero e de se desenvolver métodos mais inclusivos.

Taxa de sucesso no financiamento das pesquisas
Investigar a taxa de aprovação de projetos de pesquisadores e pesquisadoras da Unicamp pela Fapesp foi uma forma de se verificar se a falta de financiamento era a causa da desigualdade de gênero na produção científica da Universidade – o que não ficou comprovado. Para isso, foram analisadas a taxa de habilitação das propostas submetidas e a das propostas qualificadas (avaliação de mérito científico), considerando o gênero do principal pesquisador.
“A diferença de projetos submetidos e aprovados por homens e por mulheres é significativamente menos impactante do que a diferença na produção. O problema não é o agente financiador”, afirma Bottesi. Para a professora, os resultados atestam a qualidade do trabalho das mulheres, uma vez que a taxa de habilitação delas é proporcionalmente maior do que a dos homens. “Mas, na análise de mérito científico da proposta, outras coisas fazem com que a taxa de sucesso dos homens seja maior, algo que precisamos estudar melhor”, diz.
Ainda que os dados mostrem um aumento na taxa de sucesso no geral, a dos homens ainda permanece mais elevada tanto para propostas submetidas quanto para as aprovadas, com pequenas flutuações no período analisado. Em 2023, as mulheres superaram os homens em 1%, por exemplo. Os autores do artigo argumentam que analisar fatores como o currículo profissional dos proponentes pode auxiliar para melhor entender as nuances no sucesso ou não das propostas. Inclusive levando em consideração a disparidade no número de responsáveis do sexo feminino por projetos temáticos, de maior porte e que exigem liderança internacional, em relação aos homens.
Impacto desproporcional da covid-19
Todos os campos, exceto o multidisciplinar, apresentaram uma produção científica crescente no quinquênio analisado para ambos os gêneros. Entre 2019 e 2021, há maior crescimento das publicações com autoria feminina. Após esse período, contudo, registra-se uma queda na produção de mulheres em todas as áreas do conhecimento, o que pode indicar um maior impacto da pandemia de covid-19 na carreira das pesquisadoras. Momento em que, de acordo com Eliel, ficou ainda mais evidente que as mulheres assumem mais obrigações do que os homens dentro de casa.
“A pandemia foi avassaladora para as mulheres cientistas. Isso aconteceu em todos os lugares, e a universidade não ficou atrás. Isso porque foram elas que foram cuidar da casa, dos filhos, dos idosos, que estavam todos dentro de casa. Enquanto isso, os homens aproveitaram para publicar os artigos que estavam na gaveta”, destaca Bottesi, relacionando essa situação à presença de formas contemporâneas de sexismo.



Posição da autoria indica grau de experiência do pesquisador
Outro aspecto investigado pelo trabalho é a representação das mulheres considerando as posições de primeiro autor (indicador de liderança e coordenação do estudo) e último autor (normalmente associado à supervisão ou mentoria do grupo de pesquisa). Ao comparar a participação das mulheres ligadas à Unicamp como primeira e última autoras com o total de autores, percebe-se um crescimento na participação feminina como primeiras autoras na maioria das áreas das ciências da vida e das ciências da saúde. Porém a participação geral e a última autoria decresceram em número no quinquênio.
Destacaram-se as disparidades nas ciências sociais e nas ciências físicas. Nessa última, as mulheres assinam primeiro em 34% dos casos e em último, em apenas 26%. Entretanto o impacto normalizado (field-weighted citation impact – FWCI) das publicações das mulheres nesse campo supera ligeiramente o dos homens e também a média mundial, o que pode significar que as pesquisadoras que conseguem ingressar nesse meio conquistam visibilidade justamente por causa da escassez de pessoas do sexo feminino no setor.
Nesse caso, obteve-se o impacto normalizado (FWCI), que mede a relevância da citação por meio do número de citações especificamente dentro da área de conhecimento da publicação. “Temos a questão de serem áreas mais tradicionalmente buscadas por alunos e pesquisadores homens, como a matemática e a engenharia da computação. Isso se reflete também na produção científica”, pontua o diretor-adjunto do SBU e coautor da pesquisa, Márcio Souza Martins.
Conclui-se que as mulheres ainda não ocupam posições proeminentes de autoria na mesma proporção que os homens, um fenômeno que demanda mais estudos. “As autoras mulheres estão diluídas em um contexto de um pacote de autores em cada artigo que não têm exatamente a importância da posição de autoria, nem primeira, nem última”, argumenta Bottesi. Para os autores da pesquisa, faz-se necessário fomentar não somente as áreas com baixa representação feminina, mas também aquelas em que há uma maior desproporcionalidade na questão de autoria, principalmente a economia, a econometria e as finanças, a neurociência, a física e a astronomia.
Frattini observa que publicações com autores exclusivamente brasileiros têm um menor alcance de maneira geral e que esse pode ser um fator para o menor impacto da produção feminina, reforçando a necessidade de investir na internacionalização das pesquisadoras. O fato de haver menos mulheres em final de carreira docente também pode afetar o peso da sua relevância na autoria dos trabalhos, reflete a pró-reitora.

Desigualdades multifacetadas
Os resultados apresentados revelam uma persistente desigualdade de gênero em diversos aspectos que permeiam a produção científica. Os autores concluem que a dinâmica da desigualdade de gênero é multifacetada, sendo necessário investigar os mecanismos e os fatores individuais, sociais e institucionais que a reforçam e que a perpetuam na academia.
Além de desdobramentos dos dados, os autores indicam a possibilidade de novos estudos se aprofundarem em outros cenários, como a comparação com outras universidades e bases de dados distintas. Também é possível pensar em uma análise com viés racial e de faixa socioeconômica, promovendo uma investigação interseccional.
Confira as ações sugeridas no artigo para ampliar a representatividade feminina:
- investir em mentorias e no suporte para desenvolver a liderança feminina, de modo a fortalecer a presença de mulheres em posições proeminentes, a fim de influenciar positivamente as dinâmicas de poder dentro das instituições;
- promover a equidade na autoria de trabalhos científicos, estabelecendo normas claras para a atribuição de autoria e mecanismos de monitoramento para garantir justiça no reconhecimento da contribuição feminina;
- encorajar a colaboração interdisciplinar, de modo a criar redes de integração de pesquisadoras de diferentes áreas. Isso pode incrementar a visibilidade feminina e o impacto das pesquisas;
- encorajar a participação de mulheres em eventos científicos e a disseminação do seu trabalho de modo a ampliar o alcance e o impacto da produção na comunidade acadêmica, garantindo o adequado reconhecimento e a valorização de suas contribuições;
- realizar intervenções focadas em combater os estereótipos de gênero que emergem da infância, mostrando exemplos de mulheres de sucesso nas áreas Stem (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática) para inspirar futuras gerações a se identificarem com esses campos;
- promover o financiamento de programas com baixa representação feminina, oferecendo suporte financeiro, mentoria e acesso à infraestrutura adequada, criando um ambiente mais favorável ao desenvolvimento de carreiras de sucesso na área e a superação de barreiras.
