O historiador que construiu a memória campineira
Acervo de Celso Pupo, doado para o Centro de Memória, reúne um conjunto de cerca de 9 mil itens, entre textos, material iconográfico e bibliográfico do período de 1800 a 2003
Celso Maria de Mello Pupo nasceu em São Vicente, no litoral de São Paulo, dez anos depois da Proclamação da República. Em 1914, aos 15 anos de idade, decidiu morar na Suíça, onde estava um irmão, e, por uma circunstância de momento, chegou a Campinas para se despedir dos parentes.
Antes que pudesse viajar, no entanto, eclodiu a Primeira Guerra Mundial, fechando as fronteiras da Europa. Pupo acabou ficando na cidade, onde estudaria, trabalharia e se tornaria um dos mais importantes nomes da historiografia campineira.
Diretor em Campinas da Coletoria e Recebedoria de Rendas Estaduais, o órgão então responsável pela arrecadação de impostos no Estado, Pupo morreu aos 103 anos e, ao longo da vida, se mostrou um homem com interesses que iam muito além da tarefa burocrática diária.
Monarquista por convicção e católico fervoroso, escrevia artigos em jornais e revistas, nacionais e estrangeiros, sobre economia e história. Integrou o Instituto de Estudos Genealógicos de São Paulo, o Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo, a Academia Campinense de Letras e o Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA).
Além disso, concebeu duas obras essenciais para a historiografia da cidade: Campinas, Seu Berço e Juventude e Campinas, Município no Império, nos quais conta como um ponto de parada de tropeiros transformou-se em uma das mais importantes regiões do Estado e do país.
Esses livros são a bíblia para quem quer saber mais sobre o surgimento de Campinas, mas o impacto de sua obra ultrapassa o mero registro historiográfico.
O historiador e responsável pela área de processamento técnico do Centro de Memória da Unicamp (CMU), João Paulo Berto, diz que Pupo profissionalizou a forma como se constrói a narrativa histórica ao corroborar memórias com documentos.
Uma das estratégias usadas pelo autor, lembra Berto, envolveu esmiuçar a trajetória das famílias fundadoras da cidade – suas terras, seus costumes, suas construções, seus objetos. E essa forma de compor uma narrativa faz-se presente no conjunto de cerca de 9 mil itens, entre textos, material iconográfico e bibliográfico do período de 1800 a 2003, doado pela família Pupo para o CMU.
O conjunto reúne documentos referentes ao universo urbano e rural de Campinas, além de estudos sobre genealogia, nobiliarquia (o registro de famílias “da nobreza”) e a história dos museus da cidade, em um trabalho obstinado de garimpagem que durou décadas.
Segundo Berto, que desenvolve um projeto de pesquisa de pós-doutoramento em história da arte sobre a obra de Pupo, o autor adotou como parâmetro o método usado por Afonso Taunay no processo de construção do Museu Paulista, no início do século 20. Taunay lançou mão da trajetória de várias famílias para mostrar o protagonismo paulista na história do Brasil.
Nas picadas abertas por Taunay, Pupo passou a buscar fontes e constatou que Campinas não tinha um registro oficial de sua memória. A cidade não possuía arquivos, não tinha museus e não contava, à exceção do CCLA, com coleções organizadas. O CCLA, fundado em 1901, possuía uma rica biblioteca e uma coleção de documentos históricos doados pelas famílias de personalidades campineiras como Carlos Gomes, Campos Salles e Francisco Glicério.
Pupo descobriu, então, que esse tipo de material existia: um universo de fontes primárias raras e inéditas, que, porém, encontrava-se espalhado, nas casas de um grande número de pessoas, nas mãos de colecionadores ou mesmo em órgãos públicos, como a própria coletoria, na qual trabalhou por décadas.
E assim, a partir dos ramos familiares de campineiros ilustres e dos dados espalhados pelo aparato burocrático municipal, o pesquisador começou a reunir coleções.
Pupo fez mapeamentos de dados econômicos e desenredou informações sobre os proprietários de sesmarias, engenhos, fazendas. E esquadrinhou costumes e modos de vida, compondo, aos poucos, a história da cidade e da zona rural campineira.
“O livro Campinas, Seu Berço e Juventude, por exemplo, é sobre isso. Ele não fala da terra em si. Fala das famílias que ocuparam as terras e das famílias que passaram a compor a cidade. Ele dá um basta no memorialismo. Trata-se de uma espécie de profissionalização da escrita da história da cidade. Antes se fazia isso com base em relatos, em um tom memorialístico. Ele, ao contrário, vai buscar as fontes [materiais]. Corre atrás do documento”, explica Berto.
“Mello Pupo está inserido em uma densa rede intelectual paulista, alimentada por discussões da historiografia brasileira do período que visava, entre outros, à construção de um aparato – via preservação da cultura material – para a formulação de uma narrativa sobre a proeminência paulista para a construção da própria história do Brasil”, escreveu Berto no seu trabalho de pós-doutorado.
Um pequeno tesouro
Pesquisadora colaboradora do CMU, a professora Maria Alice Rosa Ribeiro, que propôs um projeto de tratamento técnico e a disponibilização do conjunto documental de Pupo, acredita ter descoberto um pequeno tesouro em meio aos 9 mil itens do acervo.
Ribeiro encontrou o que seria o esboço de um dicionário, ou uma enciclopédia, no sentido tradicional, com uma lista de artistas cujas obras estão espalhadas pelas ruas e pelos espaços culturais da cidade, em forma de pintura, escultura, desenho ou fotografia.
Ribeiro conta que Pupo andava por Campinas em busca de informações sobre o autor de esculturas que ornamentam praças, de pinturas que adornam paredes de órgãos públicos e das fotografias e dos desenhos que decoram ambientes. Ao longo do tempo, acabou compondo um catálogo sem similar.
No total, há quatro volumes de uma futura enciclopédia, com mais de 200 nomes, listados em ordem alfabética, com informações biográficas dos artistas e com registros esmiuçados das obras. Os volumes oferecem um panorama inédito e amplo sobre o caminho percorrido pelas artes plásticas em Campinas.
Da lista constam vários artistas do século 19 e várias obras, entre paisagens, painéis decorativos e retratos realizados pelo pintor brasileiro Oscar Pereira da Silva, por exemplo. Em meio ao material, há óleo sobre tela de Bento Quirino e Francisco Glicério. E, também, retratos de alguns barões, como Joaquim Policarpo Aranha, o Barão de Itapura.
Muitas das informações que integram o catálogo, Pupo as retirava de artigos de revistas, de reportagens publicadas nos jornais da época e de outros tipos de fonte. Na pesquisa, o pesquisador descreve, por exemplo, parte da trajetória do foto-pintor Ernesto Papf, que entre outras obras fez uma tela de corpo inteiro de José Paulino Nogueira. Há, ainda, referências ao pintor naturalista português Carlos Reis.
“Para ele, não importava se o artista tinha nascido ou vivido em Campinas. Bastava ter tido alguma obra exposta na cidade”, conta a professora.
Por conta desse critério tão amplo, no garimpo de Pupo encontra-se material já do século 20. Ele recolheu, por exemplo, dados biográficos e reproduções de peças de José de Castro Mendes, um artista, historiador, jornalista, músico e pesquisador que hoje empresta o nome ao teatro municipal de Campinas, na Vila Industrial.
Coincidentemente, o CMU já tinha sob guarda aquarelas de Castro Mendes tiradas de uma série inspirada em composições musicais e considerada de alto valor artístico e histórico. Uma dessas aquarelas mostra uma mulher escravizada, da Fazenda Santa Isabel, que os especialistas acreditam compor uma outra série, denominada “Velhas Fazendas”, uma das mais importantes coleções do artista campineiro, adquirida pelo Museu Arquidiocesano de Campinas.
O catálogo de Pupo fala até mesmo da obra do escultor Lélio Coluccini, que concebeu o Monumento a John F. Kennedy (o presidente norte-americano assassinado em 1963), inaugurado em 1966 na praça existente no cruzamento da Avenida Barão de Itapura com a Avenida Nossa Sra. de Fátima, no Taquaral.
Ribeiro lembra que o trabalho está incompleto e, assim, aberto a colaborações. “Mas que venham acompanhadas de ‘provas’, como exigia Pupo”, adverte a professora.
O projeto
O tratamento técnico das peças de Pupo, que inclui catalogação, conservação, digitalização e informatização completa da coleção, a ser disponibilizada no Portal Digital do CMU, vem sendo realizado por meio do projeto Campinas, 250 anos (1774-2024): História, Memória e Patrimônio Cultural a Partir da Coleção Celso Maria de Mello Pupo.
Esse projeto, financiado por meio da Lei Paulo Gustavo e da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura de Campinas e proposto por Ribeiro, inclui ainda a realização de uma exposição virtual e o lançamento de um catálogo, ambos em março deste ano.