A trilha sonora exerce um papel central na construção de uma narrativa audiovisual, centralidade muitas vezes ignorada por grande parte do público, seja de cinema, de televisão ou das plataformas de streaming. Apesar disso, a construção da memória do espectador é fortemente influenciada pelas músicas que ajudam a contar a história de um filme, perdurando em um lugar afetivo entre as reminiscências de produções que marcaram as vidas das pessoas. Essas conclusões fizeram parte da mesa “O Cinema e a Música”, mediada pela cineasta Laís Bodanzky, nesta quinta-feira (17), no Auditório da Associação de Docentes da Unicamp (Adunicamp).
Atual artista residente do Programa “Hilda Hilst”, do Instituto de Estudos Avançados (IdEA), Bodanzky trouxe para o debate na Unicamp quatro colegas e colaboradores de seus filmes, que fizeram um relato de suas trajetórias profissionais e das dificuldades do mercado de trabalho, além de terem compartilhado trechos de produções que marcaram suas vidas, como público ou profissionais de cinema, entre os anos 1960 e os anos 2000.
Os músicos Talita del Collado, do Trio Mana Flor, André Hosoi, dos Barbatuques, Tejo Damasceno, do Coletivo Instituto, e Eduardo Bidlovski, o BiD, escolheram, a pedido de Bodanzky, obras audiovisuais cujas trilhas sonoras constituem elemento central das narrativas, como a animação “A Pantera Cor-de-Rosa” (1969), com tema musical de Henry Mancini (1924-1994), a ficção “Laranja Mecânica” (1971), de Stanley Kubrick (1928-1999), com música de Wendy Carlos, o documentário “A Pessoa é Para o que Nasce” (2003), de Roberto Berliner, com música de Hermeto Paschoal, a série de televisão “Batman” (1966), de William Dozier (1908-1991), com música de Neal Hefti (1922-2008), e o musical “Os Embalos de Sábado à Noite” (1977), de John Badham, com música do grupo britânico Bee Gees.
“Quando pensamos em cinema, pensamos em imagem, mas, na verdade, 50% do filme, ou de qualquer produto audiovisual, é sonoro, é a alma daquilo que estamos assistindo, que conduz de forma muito sutil, muito bonita, o espectador de qualquer idade e, muitas vezes, nos marca para a vida inteira. De alguns filmes, só consigo me lembrar da música, lembro da cena porque tem aquela música, que aciona uma memória muito engraçada”, declarou Bodanzky na abertura do evento.
A cineasta cita como exemplo a trilha sonora composta pelo maestro estadunidense John Williams para a ficção científica “Guerra nas Estrelas” (1977), de George Lucas, que marcou a memória de sua infância de uma maneira muito emotiva. “A trilha te leva de volta para aquele espaço-tempo imaginário.” Segundo Bodanzky, no entanto, é importante que o diretor e o montador de um filme fiquem atentos para que a música pontue o personagem, e não o contrário. Nos casos em que a música conduz a narrativa, corre-se o risco de limitar o filme à linguagem de um videoclipe, alerta a diretora, explicando a necessidade de a trilha sonora estar a favor da narrativa, para que o público mergulhe mais ainda nas personagens e na história.
Entre os trechos de trabalhos de trilhas realizados pelos convidados, “Chega de Saudade” (2007) foi selecionado por Bid para esmiuçar o processo criativo da produção. O drama, dirigido por Bodanzky, é sobre uma noite em um baile da terceira idade, num clube de dança paulistano, e foi o único filme de sua carreira em que a trilha sonora foi feita antes da filmagem.
A diretora explicou que foi necessário selecionar as músicas previamente, garantir a autorização de uso dos fonogramas, pesquisar o tipo de sonoridade dos instrumentos musicais desses ambientes e gravar as canções com músicos em um estúdio para posteriormente filmar as cenas do roteiro com os atores. Isso demandou, ainda, a necessidade de sincronizar a banda que estava sendo filmada nas cenas no baile com as músicas previamente gravadas e até mesmo a encenação dos dançarinos em pleno salão, bailando sem música, para não atrapalhar as tomadas de diálogos que ocupavam a cena principal.
A atividade desta quinta-feira foi a terceira do ciclo “O Cinema em Construção: Experiência Criativa com Laís Bodanzky”, em andamento nos meses de outubro e novembro no IdEA, cujo objetivo é abordar como uma obra cinematográfica sai do papel e chega às telas. A diretora, produtora e roteirista abriu a programação da residência artística para um auditório lotado na ADunicamp, em 7 de outubro, na exibição de seu longa-metragem de estreia, “Bicho de Sete Cabeças” (2001). O encontro proporcionou um diálogo muito interessante com o público sobre os desafios da adaptação literária para os cinemas, no caso, do livro “Canto dos Malditos” (1990), do escritor Austregésilo Carrano Bueno (1957-2008), além de abordar a questão da luta antimanicomial que o sucesso do filme ajudou a trazer à tona no debate público.
No dia 8, Bodanzky participou de uma aula do curso de Midialogia, realizada na sede do IdEA, apresentando comentários, sugestões e críticas aos projetos de audiovisual apresentados pelos alunos do professor Gilberto Sobrinho. A atividade, destinada exclusivamente aos estudantes do curso, contará com um segundo encontro em novembro. Nos dias 24 e 31 de outubro, a cineasta também conduzirá uma oficina, cujas inscrições já foram encerradas, com leitura e discussão do projeto cinematográfico “O Silêncio” e do roteiro de longa-metragem de “Pano Preto”, ambos inéditos. O primeiro é livremente inspirado na obra literária “A Vida Começava Lá: Uma história de repercussão corporal” (Stacchini Editorial, 2019), autobiografia de Fernando Barba (1971-2021), ex-aluno do curso de Música na Unicamp e fundador do grupo de percussão corporal Barbatuques, escrita em parceria com Renata Ferraz Torres. O roteiro de “Pano Preto” tem como tema principal a psicanálise infantil.
A programação da artista residente do IdEA prevê a exibição de mais um longa-metragem, “Como Nossos Pais” (2017), sobre o espaço da mulher na sociedade e a temática dos relacionamentos familiares, com roteiro escrito em parceria com Luiz Bolognesi. A exibição seguida de debate com a diretora, no Auditório da ADunicamp, em 11 de novembro, às 18h, marcará o fim do ciclo de Laís Bodanzky na Unicamp.
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