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Atualidades

Delfim Netto foi porta-voz de um projeto empresarial/militar, diz professor do IE

O economista é considerado o pai do “milagre brasileiro”, o crescimento econômico que chamou a atenção do mundo durante regime militar (1964-1985)

O economista Marco Antonio Martins Rocha: projeto organizado em torno de uma farsa
O professor Marco Antonio Martins Rocha: projeto organizado em torno de uma farsa

Considerado o pai do “milagre brasileiro” – o crescimento econômico que chamou a atenção do mundo durante regime militar (1964-1985) –, Antonio Delfim Netto morreu na última segunda-feira (12), aos 96 anos, como porta-voz de um projeto empresarial/militar, organizado em torno de uma farsa, segundo avaliação do mestre e doutor em teoria econômica Marco Antonio Martins Rocha, professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

De acordo com o professor, a farsa está relacionada à tentativa de recuperar o ideário “nacional-desenvolvimentista” varguista – assentado no tripé industrialização, intervencionismo estatal e nacionalismo –, um ideário que, no entanto, no caso do regime militar, revelou-se ditatorial e excludente.

Rocha diz tratar-se de uma farsa porque, no projeto, restou muito pouco de nacional. Na sua avaliação, ocorreu um desenvolvimento com forte apoio no capital estrangeiro – sobretudo em setores considerados chave pelo regime –, muito pouco inclusivo, desigual e marcado pela famosa frase atribuída a Delfim, segundo a qual era preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. “Delfim morreu dizendo que a frase não era dele, porém, de qualquer forma, morreu sem ver o bolo dividido, porque, na verdade, essa nunca foi a intenção dele”, afirma o professor.

Rocha diz que o próprio nome “milagre brasileiro” soa como uma impostura já que emprestado de outros fenômenos pouco afeitos ao caso nacional, os chamados “milagre asiático” e o “milagre italiano”. “Nesses países, o ‘milagre’ deu-se na reconstrução no período pós-guerra, quando se pensou em uma sociedade igualitária, em que todos os cidadão tivessem acesso a direitos e oportunidades. O que se vê no Brasil é uma espécie de farsa disso”, argumenta o professor.

“Utiliza-se o nome para legitimar um processo de um crescimento voltado ao enriquecimento da burguesia industrial, um processo no qual, em nenhum momento, estava posta a ideia de homogeneização social”, completa.

Rocha avalia que o Brasil do “milagre” foi um período de crescimento motivado, em grande medida, por um cenário internacional de grande liquidez, em que o governo brasileiro teve como ponto positivo o fato de oferecer suporte a um tecido industrial já existente – coisa que não ocorreu, por exemplo, nas ditaduras chilena e argentina. “O governo Geisel [Ernesto Geisel, 1974-1979] teve ao menos o mérito de canalizar isso para o setor produtivo. Mas isso estava ligado muito mais ao fortalecimento da burguesia industrial brasileira”, explica.

Segundo o professor, o “milagre”, na verdade, traduziu-se na capacidade do governo de atrair capital estrangeiro com o objetivo de fortalecer o grande capital brasileiro (capital privado) e não de fortalecer um projeto de inclusão social ou de formação de uma sociedade mais igualitária. “Então, se a gente pensa no milagre, talvez seja mais honesto tratar o milagre como um projeto de fortalecimento da burguesia industrial brasileira. A ideia de milagre está muito mais relacionada a isso do que, digamos, à construção de um país menos desigual ou com maiores oportunidades para a população.”

Delfim Neto é considerado o pai do “milagre brasileiro"
Delfim Neto é considerado o pai do “milagre brasileiro”

Ato Institucional Nº 5

Rocha lembra também que Delfim não apenas subscreveu o Ato Institucional Nº 5 – que, em dezembro de 1968, suprimiu direitos individuais abrindo caminho para a institucionalização da tortura e do assassinato de opositores como instrumento de ação do Estado – como fez questão de corroborar essa posição anos mais tarde, já no período democrático.

“Ele não só apoiou a edição do AI-5, como corroborou esse apoio posteriormente, no período democrático, quando todos os fatos históricos conhecidos, consensuais, já tinham demonstrado que a ideia de um conflito armado ou de uma revolução socialista no Brasil era completamente estapafúrdia”, argumenta o professor.

“O fato de ele desconhecer a falta de fundamento dessa teoria conspiratória no período da edição do AI-5 já é algo muito questionável, mas, depois dos fatos históricos já assentados, ele corroborar essa posição sem nenhuma sustentação histórica mostra-se algo extremamente lamentável. Isso define o perfil desse personagem”, afirma.

Para Rocha, em nenhum momento da vida, Delfim se retratou sobre a ditadura. De acordo com o professor, fez justamente o contrário. O professor ainda chama atenção para o fato de Delfim não ver contradição entre ditadura e liberalismo econômico.

“Interessante a gente pensar que Delfim é um personagem latino-americano muito específico. No seguinte sentido: ele é um liberal econômico, mas ditatorial político. Milton Friedman [economista norte-americano], um liberal muito conhecido, foi assessor do governo ditatorial de [Augusto] Pinochet no Chile, demonstrando que entre os liberais não há problema em ser liberal na economia e autoritário no campo político”, diz.

Maria da Conceição Tavares

O professor do IE afirmou lamentar o fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter, em nota oficial sobre a morte de Delfim, comparado a trajetória dele com a da economista Maria da Conceição Tavares.

“Achei inclusive lamentável do ponto de vista institucional e da própria defesa da democracia o presidente Lula comprar Delfim à professora Maria da Conceição Tavares – uma mulher que foi presa e torturada pelo regime e, portanto, que não poderia ser comparada a alguém postado ao lado do algoz [dela]”, disse Rocha.

O professor ressalva, no entanto, que sempre houve diálogo entre os economistas. E conta, por exemplo, que Delfim conversava com Luiz Gonzaga Belluzzo, com a própria Conceição Tavares e com muitos outros. Segundo Rocha, porém, é preciso deixar claro que Conceição Tavares e Delfim pertenciam a campos opostos. “A Conceição sempre foi uma figura comprometida com a classe trabalhadora e com o marco democrático. É exatamente o contrário do Delfim.”

“Fazer uma comparação desse tipo, primeiro, é errado do ponto de vista dos fatos. Depois, ela é injusta. Apaga a memória da Conceição e sobretudo apaga a memória daqueles que lutaram pela manutenção do marco democrático, transformando tudo em uma espécie de vala comum”, finaliza.

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