Alimentos processados feitos principalmente com carne suína, como salsicha, linguiça ou mortadela, contêm entre os seus ingredientes a gordura de porco, também chamada de toucinho. Essa matéria-prima industrial possui importantes funções tecnológicas e sensoriais, tais como oferecer maior resistência à oxidação e dar uma textura adequada, uma cor agradável e um sabor típico aos alimentos. Apesar desses benefícios, a gordura de porco é rica em gordura saturada, e por isso o seu consumo excessivo pode ser prejudicial à nossa saúde, aumentando o risco de ocorrerem várias doenças crônicas, como obesidade, problemas cardiovasculares e alguns tipos de câncer, entre outros potenciais danos ao organismo.
No entanto produtos cárneos processados à base de carne suína são fontes de proteínas de alto valor biológico, pois contêm minerais e vitaminas, principalmente do complexo B, e seu consumo no Brasil é bastante elevadoem função de sua praticidade, da conveniência, dos hábitos alimentares dos brasileiros e do custo inferior da matéria-prima quando comparada aos cortes de carne in natura.
Nesse cenário, tornar tais alimentos mais saudáveis tem sido o objetivo de várias linhas de pesquisa. Surgiu assim o interesse de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp em desenvolver um ingrediente capaz de substituir a gordura animal em suas propriedades tecnológicas e ainda agregar benefícios funcionais.
“Começamos a pesquisar um ingrediente que pudesse substituir a gordura saturada em produtos cárneos e oferecer outras propriedades benéficas ao organismo. Assim desenvolvemos uma emulsão gel prebiótica com essa finalidade, uma substância dotada das mesmas propriedades físicas da gordura suína, como textura, consistência, sabor etc., porém livre de gordura saturada e com outros benefícios adicionados”, explica Rosana Goldbeck, professora da FEA.
Buscando aumentar o efeito benéfico do ingrediente, os pesquisadores optaram pelo uso do xilo-oligossacarídeo (XOS), um açúcar com função prebiótica e que pode ser obtido a partir do bagaço da cana-de-açúcar. “Escolhemos uma fonte de recursos abundante e acessível para favorecer a viabilidade da aplicação do XOS ao produto e ainda criar uma alternativa sustentável”, acrescenta Goldbeck, mencionando que a pesquisa contou com a assessoria da Agência de Inovação da Unicamp (Inova Unicamp) para os trâmites relativos à proteção de propriedade intelectual.
As vantagens da função prebiótica nos alimentos
Substâncias prébióticas são aquelas não digeríveis pelo organismo humano, mas que servem como alimento para as bactérias benéficas presentes no sistema digestivo, criando assim um ambiente intestinal saudável e equilibrado.
De acordo com Goldbeck, a função prebiótica do XOS já era conhecida: “Mesmo assim, tínhamos o desafio de saber se, uma vez incorporado à emulsão, ele conservaria a sua função prebiótica. E a resposta foi positiva. Os ensaios comprovaram que, mesmo após a mistura com a emulsão gel, essa função prebiótica foi mantida”, afirma a pesquisadora.
Ela acrescenta que, para a obtenção do XOS a partir da cana-de-açúcar, é possível usar processos limpos e não agressivos ao meio ambiente. Como o bagaço da cana-de-açúcar costuma ser descartado pela indústria, a tecnologia desenvolvida lança mão de uma fonte sustentável, o que favorece a sua aplicação.
Ainda a esse respeito, Marise Rodrigues Pollonio, professora da FEA que também integrou o grupo de pesquisa, explica que um dos maiores desafios no processamento de produtos como salsicha, mortadela, linguiça etc. é substituir o toucinho e ainda manter as características desses produtos. “A gordura saturada do toucinho, nessa invenção, foi substituída por óleos vegetais com melhor perfil de ácidos graxos, sendo estabilizados juntamente com o ingrediente prebiótico XOS. Os resultados obtidos em diferentes experimentos indicaram sucesso nessa reformulação, o que poderá ser altamente relevante para a indústria de processamento”, afirma Pollonio.
A emulsão gel, uma solução com maior estabilidade
Reduzir o teor de gordura saturada em produtos cárneos consiste em um desafio permanente da indústria alimentícia. Para substituí-la, em geral são usadas emulsões compostas por óleos e água. Mas essa combinação tem o inconveniente de os componentes não serem miscíveis, o que demanda o uso de agentes emulsificantes para reduzir a sua instabilidade.
Por outro lado, o gel é uma substância mais estável, com uma estrutura molecular capaz de reter água e outros componentes. “Graças à sua maior estabilidade, as emulsões gel têm se consolidado como uma solução promissora para uso na indústria de alimentos”, diz Pollonio.
Ela comenta que sua aplicação em produtos cárneos ainda é incipiente. “Mas a emulsão gel desenvolvida nessa pesquisa é um ingrediente que pode ser incorporado tanto na formulação de produtos emulsionados cárneos tradicionais como também em produtos híbridos ou aqueles denominados plant-based, ou seja, à base de plantas, sem o uso de ingredientes animais”, explica a pesquisadora.
Maior capacidade de conservação alimentar e menos calorias
Rosiane Lopes da Cunha, professora da FEA e também integrante do grupo de pesquisa, cita outros benefícios que o uso do XOS proporcionou à emulsão gel desenvolvida: maior estabilidade ao longo do tempo e maior capacidade de preservação dos aromas e dos sabores dos alimentos.
Segundo Cunha, “a emulsão gel alcançou propriedades físicas similares às do toucinho, a gordura suína. A textura e a consistência foram semelhantes, suprindo assim a sua função tecnológica. Mas, apesar dessa similaridade, as composições de ambos são diferentes. E nós descobrimos que, quando introduzido na emulsão gel,o XOS permitiu reduzir a oxidação lipídica. Essa é outra grande vantagem que ele proporciona”, detalha a pesquisadora.
A oxidação lipídica é um processo químico decorrente da reação entre os lipídios (gorduras e óleos) e o oxigênio, sendo uma das principais causas da deterioração de alimentos. Quando ela ocorre, os alimentos perdem suas qualidades, com mudanças no sabor, aroma, cor e valor nutricional.
Cunha também explica que “as gorduras insaturadas tendem a se oxidar mais facilmente que as saturadas. Por isso, se por um lado ganharíamos nutricionalmente com a introdução da gordura insaturada, por outro perderíamos em termos de oxidação. A inclusão do XOS evitou essa perda, pois ele contribuiu para reduzir a oxidação lipídica. Dessa forma, ele proporcionou ganhos tecnológicos e nutricionais à emulsão gel”, finaliza.
Outro benefício da substituição da gordura suína pela emulsão gel prebiótica deu-se na redução do teor calórico, em virtude da diminuição da quantidade de lipídeos em sua composição. “Quando o toucinho é substituído pela emulsão gel, há uma redução do teor de gorduras, e consequentemente, do teor calórico total, uma vez que, na elaboração dessa emulsão gel, o óleo vegetal é combinado com quase 50% de água”, detalha Pollonio.
Essa redução calórica ocorre pois os lipídeos são uma categoria de macronutrientes densa em energia. Ao substituí-lo pela emulsão, naturalmente ocorre uma queda na quantidade de gorduras e, portanto, também se reduz o total de calorias por porção do alimento, o que pode ser um fator atraente para consumidores que desejam uma dieta menos calórica.
Substituição com as mesmas propriedades físicas
A substituição de um ingrediente, para ser satisfatória, passa necessariamente pela reprodução das propriedades físicas do componente que será removido. Por isso, um dos desafios dessa pesquisa passou por obter um ingrediente que fosse mais saudável e que apresentasse as mesmas características físicas da gordura de porco.
“O toucinho possui propriedades físicas importantes para dar funcionalidade, consistência, textura, sabor e aroma aos produtos cárneos. A emulsão gel obtida alcançou essas mesmas características”, diz Pollonio.
Contudo, a inclusão do XOS exigiu um novo desafio: ao ser extraído da cana, esse tipo de açúcar ganha uma coloração mais escura que a da gordura suína. Como comenta João Luís Faneco Paschoa, pesquisador da FEA que integrou o grupo e cuja dissertação de mestrado abordou o tema, “foi preciso incluir um processo de clarificação do XOS em laboratório para que ele alcançasse a mesma coloração da gordura animal, porém preservando as suas características. Nós conseguimos esse resultado, mas foi um desafio a mais ao longo da pesquisa”, comenta o Paschoa.
Potenciais aplicações
Na pesquisa desenvolvida na Unicamp, a gordura suína foi escolhida como objeto de estudo em virtude de ser bastante consumida pela população em geral. Os pesquisadores, no entanto, explicam que a emulsão gel prebiótica é um ingrediente com potencial de aplicação em outros produtos cárneos, com origem em outros tipos de animais.
Além disso, o ingrediente pode ser incorporado na formulação tanto de produtos emulsionados cárneos tradicionais quanto de produtos plant-based ou de produtos híbridos (uma mescla de ambos), ambos cada vez mais consumidos. Dessa forma, além de suas propriedades funcionais que despertam o interesse dos consumidores, o ingrediente tem um atrativo a mais junto aos segmentos do público que evitam o consumo de carne animal, pois a emulsão gel substitui um ingrediente com esse tipo de origem.
Como licenciar uma tecnologia na Unicamp
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Matéria originalmente publicada no site da Inova Unicamp.
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