Lúcio Aneu Sêneca, nascido por volta do ano 4 a.C. e morto em 65 d.C., exerceu diversas funções na sociedade romana. Integrante da elite, estadista respeitado e preceptor de Nero, foi simultaneamente filósofo e dramaturgo, legando à posteridade o que são consideradas as únicas tragédias na íntegra produzidas pela civilização romana de que temos notícia. Abarcando gêneros diversos, como a epistolografia filosófica e o teatro trágico, o autor fez das emoções parte importante da estruturação de suas obras.
O estudo das emoções ou self-studies é uma área ainda nova de estudo, iniciada há pouco mais de trinta anos, mas que recentemente conquistou uma relevância muito grande em diversas áreas do conhecimento, inclusive nos estudos sobre a Antiguidade Greco-Romana. Muitos pesquisadores apostam na utilização dessa teoria também para melhor compreender a obra de Sêneca, que utiliza em seus textos uma linguagem da interioridade. Alguns dos traços linguísticos do autor são: o uso do pronome reflexivo direto e indireto, o apelo à linguagem jurídica e a acumulação pronominal. Essas características são consideradas uma grande contribuição para o vocabulário filosófico da cultura ocidental.
Foi a partir do estudo sobre as emoções que a pesquisadora Ana Felicio desenvolveu seu trabalho de doutorado defendido no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. A pesquisadora, que já vinha estudando a obra do autor romano desde sua iniciação científica, percebeu que sobressaíam nas epístolas de Sêneca os temas da amizade, do medo e do autocuidado. Sua pesquisa tratou das emoções em dois gêneros textuais diferentes, a epistolografia filosófica e a tragédia romana, destacando a ligação entre ambos, precisamente na busca de traços específicos referentes ao medo e à esperança. “Essa foi uma aposta um pouco ingênua no começo, de pensar as emoções também nas tragédias. Mas, ao fim, ficou interessante analisar as mesmas emoções em outro tipo textual”, comentou a pesquisadora.
O trabalho, realizado sob a orientação da professora do IEL Isabella Tardin Cardoso, partiu de questionamentos diferentes para cada um dos dois gêneros. Nas epístolas, porção da obra de Sêneca filiada à escola estoica, questionou-se até que ponto o medo e a esperança estão presentes e como eles se relacionam. Sobre os textos de teatro trágico, o questionamento caminhou no sentido de perceber qual a dimensão dramática que essas referências, ligadas ao medo e à esperança, exercem nas peças teatrais em si.
Felicio apontou que as tragédias de Sêneca apresentam uma particularidade importante: a construção de monólogos, que dão voz aos personagens. Esse transformou-se em um ponto importante de sua pesquisa, a maneira como as emoções aparecem em cena, como elas deveriam ser interpretadas nas apresentações teatrais para além do texto. Segundo a pesquisadora, essa característica das tragédias de Sêneca diz muito sobre a cultura romana, baseada em debates retóricos, que, nas peças, podem ser percebidos na descrição dos personagens e nas diretrizes sobre como deveria ser a atuação em cena.
Outra questão importante da pesquisa tratou da unicidade da autoria de Sêneca, tanto na obra filosófica quanto na obra trágica. Felicio disse que essa questão ainda está em discussão entre os estudiosos do autor antigo e gera um interessante debate.
“Existe uma discussão no mundo dos estudos de Sêneca a respeito da qual cada estudioso adota uma posição. Alguns acham que não devem ser lidos juntas [as obras filosóficas e as obras trágicas], pois são pertencentes a dois gêneros diferentes. Outros acham que devem ser lidas juntas, porque se vê estoicismo nas tragédias. E há alguns, mesmo que em minoria, defendendo que nem foi Sêneca quem escreveu as tragédias”, comenta a pesquisadora.
Diante dessas diferentes posições, Felicio explica que, em sua tese, tentou propor a questão do medo e da esperança como uma chave de leitura das obras, considerando as especificidades dos dois gêneros textuais. A pesquisadora enfatiza ter tomado cuidado para não dizer simplesmente que as tragédias são a divulgação da filosofia estoica de Sêneca, tentando demonstrar o estilo do autor para além do estoicismo, algo presente, segundo acredita, no estilo retórico da linguagem, a unir esses dois tipos de texto tão diferentes. Essa característica da linguagem senequiana surge principalmente naquilo que os estudiosos denominam de “linguagem interior”, algo muito evidente, nas cartas, como se o autor estivesse falando de dentro da consciência e, nas tragédias, a partir das falas das personagens, como uma linguagem autorreferencial.
A pesquisa também contou com a coorientação do professor David Konstan, da Universidade de Nova York (Estados Unidos), um importante pesquisador da área dos estudos sobre as emoções na Antiguidade. Felicio lembra que conheceu o professor estadunidense lendo seus textos, como o livro A Amizade no Mundo Clássico.
“O professor Konstan tem considerações muito importantes nesse campo, principalmente sobre as emoções no mundo grego. Ele construiu uma tese bem interessante segundo a qual Aristóteles, quando descreve as emoções, está criando uma categoria”, recorda a pesquisadora. Muitos estudos sobre as emoções levam em consideração a categorização de Aristóteles, entendendo as emoções não como algo meramente irracional, mas como algo da ordem do cognitivo. Diversas definições das emoções utilizadas hoje em dia pela psicologia relacionam-se com a categorização aristotélica, mesmo que não sejam referenciadas historicamente.
Ao realizar uma leitura sistematizada de uma seleção de epístolas e tragédias de Sêneca, a pesquisa de Felicio contribui para uma maior compreensão sobre as emoções no estoicismo senequiano. Para Sêneca, o objetivo final da filosofia era libertar o proficiens – aquele que caminha no mundo da filosofia – do medo e da esperança. O estudo desses sentimentos evidenciou os limites e as possibilidades de um diálogo entre as epístolas e as tragédias do autor romano e revelou sua compreensão do “eu”, diante das técnicas textuais de autoconstrução e autotransformação.
Saiba mais sobre a pesquisadora Ana Bezerra Felicio.
Lívia Mendes Pereira é discente no curso de Especialização em Jornalismo Científico da Unicamp, bolsista da Fapesp (Mídia Ciência) no Centro de Estudos Clássicos do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e possui doutorado em Linguística.