Um artigo assinado pelos zoólogos brasileiros Fabrizio Marcondes Machado e Rodrigo Salvador, publicado no periódico científico internacional Tropical Medicine and Health (Medicina Tropical e Saúde, em tradução livre), defende a alteração da nomenclatura de uma doença infecciosa facilmente transmissível, que acomete crianças e adultos e que ocorre em praticamente todas as regiões habitáveis do planeta: o molusco contagioso. Ao contrário do que seu nome sugere, a enfermidade não possui qualquer relação com os animais do filo Mollusca, sendo causada, na realidade, por um vírus de DNA de fita dupla do grupo Poxvírus, pertencente à mesma família do vírus da varíola. Daí o novo nome proposto pela dupla de pesquisadores: wpox.
Professor especialista visitante do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, Machado explica que a doença mostra-se bastante comum. “Somente no Brasil, ela atinge mais de 150 mil pessoas por ano”, afirma. Trata-se de uma infecção viral cutânea, caracterizada pela formação de pequenas lesões arredondadas chamadas pápulas que, ao serem espremidas, liberam um conteúdo de consistência pastosa. “Talvez esse detalhe explique o motivo de [a doença] ter recebido aquele nome, afinal os moluscos são animais que possuem o corpo mole”, sugere o pesquisador. Pode ocorrer em diferentes partes do corpo e acomete principalmente crianças e adultos com o sistema imunológico comprometido. De maneira geral, não é grave. Caso o paciente esteja saudável, a doença desaparece sozinha, sem a necessidade de medicação ou de outros procedimentos. “Embora indolor, as pápulas podem coçar bastante e até mesmo aparecer no rosto de crianças e adolescentes, causando problemas de autoestima.”
Especialista em moluscos, Machado explica que a ideia de escrever o artigo surgiu ao se deparar com uma publicação médica dedicada à moléstia. “Nunca tinha ouvido o termo e, ao ler a publicação, descobri que se tratava de uma doença causada por um vírus, ou seja, não tinha nada a ver com animais. Decidi estudar melhor o caso e, então, refutar a questão”, explica o zoólogo. “Quando se ouve falar pela primeira vez em molusco contagioso, devido à ordem das palavras, principalmente em línguas românicas como o português e o espanhol, fazemos uma associação direta, como se o animal fosse o causador desse mal – e ainda por cima como se fosse contagioso.”
O artigo reúne uma série de argumentos sobre as desvantagens de manter a nomenclatura atual, a começar pela não conformação com o guia de boas práticas para nomear enfermidades, lançado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015. “Os nomes das doenças devem evitar impactos negativos desnecessários, entre outras coisas, ao bem-estar animal”, sugere o texto dos pesquisadores. Segundo Machado, um dos casos mais emblemáticos de aplicação das diretrizes da entidade internacional envolveu uma situação recente, no Brasil. Em 2022, um grande número de macacos foram mortos no país devido ao temor gerado pelo surto de uma moléstia então conhecida como varíola dos macacos. O nome da enfermidade foi então alterado para mpox.
“De acordo com a ONU, não se deve utilizar o nome de pessoas, animais e regiões em doenças para evitar o risco de estigmatização e discriminação. Deve-se ter em mente que preconceitos existem e, em tempos de superficialidade da comunicação, há um grande risco de aparecerem problemas de diversas ordens. No caso de animais, além do risco de extermínio, há uma consequência inclusive para a economia, pois muitos são comercializados como alimentos”, argumenta Machado. “Assim, associar diretamente o segundo maior filo de animais do planeta a uma doença contagiosa é extremamente perigoso.”
A confusão promovida pela denominação popularizada há dois séculos é outra justificativa para promover a alteração, afirma. Afinal, argumenta o cientista, ao induzir uma falsa associação com animais como a ostra, o polvo, a lula, o mexilhão e a lesma, o termo molusco contagioso desinforma, dificultando o trabalho de dermatologistas, infectologistas e pediatras ao explicarem a doença para os pacientes e seus familiares. Ademais, essa denominação não fornece qualquer detalhe esclarecedor sobre a enfermidade. “Nossa intenção aqui é conscientizar as pessoas sobre as práticas de nomeação de doenças da ONU, além de alterar a nomenclatura dessa enfermidade para evitar problemas futuros com dos moluscos.”
“Obviamente, quando nomearam a doença, há mais de 200 anos, não havia a intenção de estigmatizar os moluscos, que somam mais de 200 mil espécies”, pondera Machado, afirmando que em certas regiões do mundo a nomenclatura está caindo em desuso, sobretudo nos Estados Unidos, na Holanda e na Alemanha, onde a doença ficou conhecida popularmente como verrugas d’água (ou water warts, em inglês). “Embora não seja uma verruga, porque não é irregular, e nem exatamente aquosa, acredito que sentiram a necessidade de mudar. Porém nunca houve a publicação de nenhum artigo solicitando essa renomeação oficialmente”, diz o pesquisador.
Paralelamente ao artigo publicado na Tropical Medicine and Health, Machado e Salvador propuseram ao Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV, na sigla em inglês) a alteração do nome do vírus responsável pela infecção, hoje conhecido como Molluscipoxvirus molluscum. “Assim, a associação com os animais será completamente desfeita”, conclui o pesquisador.