A segunda edição da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT), publicada recentemente, chega em meio a uma espécie de epidemia da subnotificação de casos do tipo no país. O diagnóstico é feito por Márcia Bandini, professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e uma das coordenadoras técnicas do projeto. Segundo a docente, a expectativa é de que a nova lista, mais detalhada que sua primeira edição (do ano de 1999), permita identificar e notificar os casos que não vêm sendo detectados, e isso a fim de traçar um perfil do adoecimento dos trabalhadores brasileiros.
“A imensa maioria das notificações de agravos, hoje, é relativa a acidentes de trabalho, não a doenças. Olhando para os dados, a proporção é de quase três em cada quatro casos”, afirma Bandini, que pesquisa a centralidade do trabalho no processo de saúde-doença das pessoas. “Queremos saber antes para poder prevenir”, completa a médica. A convite do Ministério da Saúde, ela dividiu a coordenação técnica do projeto com a médica Elizabeth Costa Dias, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e com o médico João Silvestre da Silva-Junior, docente da Universidade de São Paulo (USP). Além de realizar pesquisas sobre o tema, os três docentes atuam em discussões de assistência e vigilância da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast) e em debates sobre políticas públicas relacionadas ao assunto.
Um instrumento de uso clínico e epidemiológico, a LDRT permite olhar tanto para o indivíduo quanto para o coletivo, explica Bandini. O documento funciona como uma base para que profissionais possam encontrar a relação entre o diagnóstico de um paciente e sua história laboral, permitindo detectar situações em que é necessário intervir em locais de trabalho para evitar novos casos. Segundo a professora, a lista também possui uma função pedagógica. “Não é uma lista de uso só de médicos ou profissionais da saúde, mas também de sindicatos, movimentos sociais, profissionais de recursos humanos e até mesmo empregadores, porque é um guia. Queremos que sirva de fomento à vigilância, de preferência não só focada nos serviços de saúde.”
A docente destaca a complexidade do processo de elaboração do documento, interrompido com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência e reiniciado um ano depois, em versão mais enxuta. Sua elaboração envolveu um estudo inicial com 240 listas do mundo todo, algo necessário para se chegar ao estado da arte das doenças relacionadas ao trabalho. A análise comparativa dos dados levantados globalmente com a lista de 1999 e das informações recentes sobre a realidade brasileira possibilitou atualizar e ampliar a relação de diagnósticos existente. A nova versão foi submetida a oficinas técnicas – que tiveram participação do médico Sergio Roberto de Lucca (também professor da FCM) – e passou, antes de ser oficializada, por consultas dirigidas a especialistas, a profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e à população em geral.
Covid-19
A médica elenca três destaques principais da versão atual da lista. O primeiro diz respeito à covid-19, que chegou ao Brasil meses antes da conclusão dos trabalhos. “A primeira medida provisória da pandemia contava com um artigo dizendo explicitamente: a covid não é uma doença ocupacional. Isso aconteceu em abril de 2020. Em maio, o artigo foi derrubado pelo Supremo [Tribunal Federal]. Como a lista já estava muito adiantada, após buscar evidências e consultar o que a Organização Mundial de Saúde [OMS], a Organização Internacional do Trabalho [OIT] e países do mundo todo estavam fazendo, a versão final da LDRT acabou sendo publicada incorporando a covid-19. Mas, no dia seguinte, foi revogada.”
Bandini considera a republicação da lista agora uma possibilidade para que haja uma compensação pelos danos relacionados à contaminação por covid-19 no ambiente de trabalho a partir de outubro de 2020, quando o documento entraria em vigência se não tivesse sido suspenso. “Criou-se uma exceção jurídica, o que faz da lista um instrumento com validade legal desde aquele período. É importante lembrar que nem todo caso de covid-19 é relacionado ao trabalho, mas, quando for, precisa ser reconhecido como tal para fazer justiça a quem já passou por isso e para que haja uma linha de cuidado com os que trabalham hoje. E vale não apenas para os que morreram, mas também para os que foram internados e que vivem com sequelas da doença ou da internação.”
Saindo do atraso
Bandini elege o reconhecimento dos fatores psicossociais relacionados ao trabalho e sua inclusão no documento como o segundo destaque do projeto, por indicar o avanço tardio sobre questões já discutidas mundialmente desde 1980. “Estamos bastante atrasados, inclusive em relação a outros países da América Latina. A OMS acabou de publicar um documento que discute como as organizações precisam estar preparadas para lidar com a questão. A convenção 190 da OIT, de 2019, tratou da eliminação da violência e do assédio [no ambiente de trabalho]. Muitos lugares já deram um passo além e estão desenvolvendo ou adotando instrumentos de avaliação para poder tangenciar isso, que é tão subjetivo.”
Disposta em duas frentes, denominadas A e B, a lista pode ser consultada partindo do trabalho para chegar até o diagnóstico ou vice-versa, explica Bandini. Não é, portanto, um manual de doenças. Os fatores psicossociais – como assédio, violência, relação interpessoal e comunicação – encontram-se na parte A. Na outra, estão listados os transtornos mentais e o uso abusivo de substâncias psicoativas (incluindo cafeína). “Muita gente comentou sobre o café. Não é comum termos um caso de abuso de cafeína, até porque a substância não produz uma dependência tão exuberante como a cocaína ou os benzodiazepínicos, mas é possível. E, se pode acontecer, é preciso estar na lista, porque temos de ficar atentos. Mesmo que seja algo raro.”
Na mesma seção, a inclusão do suicídio como evento à parte também é mencionada como um progresso, sinalizando a importância de se discutir uma questão tão delicada. Segundo Bandini, há uma tendência em “patologizar” o problema, como se todo suicídio fosse produto de um transtorno mental que não foi tratado adequadamente. Nesse sentido, sua inserção na lista traz luz para a questão e permite discutir o papel do trabalho ao longo de um processo que pode envolver outros fatores e ser desencadeado, por exemplo, pelo desespero. “Cerca de 3,5% das pessoas têm ideações suicidas. Não estamos falando de algo ausente do nosso dia a dia”, diz.
A morte em 2017 de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e os 60 suicídios de ex-funcionários da empresa francesa Télécom, entre 2006 e 2009, são citados pela professora para lembrar que o sofrimento psíquico extremo associado ao trabalho pode se tornar um risco. “No caso francês, um estudo mostrou que existiu algo em comum, que as mortes tinham a ver com a forma como aquelas pessoas eram tratadas na organização”, afirma Bandini.
Finalmente, a ampliação do espaço reservado aos casos de câncer é a terceira diferença significativa entre a lista atual e a versão anterior, na opinião da docente. Para além da evolução dos estudos científicos, que possibilitou o reconhecimento de uma maior variedade de doenças, Bandini destaca a contribuição do Instituto Nacional de Câncer (Inca) para refinar a classificação dos diferentes agentes associados a cada tipo de câncer. A nova edição traz, ainda, os casos de câncer potencialmente relacionados ao trabalho, algo ausente do documento de 1999.