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Cultura e Sociedade

Hemocentro da Unicamp é referência mundial no uso da terapia gênica para o tratamento de pessoas com hemofilia

Trata-se de uma doença hemorrágica e hereditária; no Brasil, são mais de 13 mil pacientes atendidos pelo SUS

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A docente do Departamento de Clínica Médica (DCM) da FCM Margareth Ozelo (ao centro blusa preta) e equipe do Hemocentro: entre os melhores centros de pesquisa do mundo na área

A terapia gênica pode ser entendida como uma técnica que consiste na introdução de material genético no interior de células de pacientes de modo a fazer com que essas células ganhem uma nova função, como a produção de uma proteína, fazer com que bloqueiem uma determinada atividade ou mesmo fazer com que corrijam uma ação deficitária. Em Campinas, o Hemocentro da Unicamp é referência mundial no uso da terapia gênica para o tratamento de pessoas com hemofilia.

A hemofilia, uma doença hemorrágica hereditária, mostrou-se sempre um campo atrativo para a testagem da terapia gênica. Na Unicamp, os primeiros estudos nessa área ocorreram no final dos anos 90, em colaboração com o médico hematologista Valder Arruda, a partir de um estágio de pós-doutorado realizado por ele na Universidade da Pensilvânia (Estados Unidos). À época, três pacientes brasileiros com hemofilia viajaram ao país a fim de receberem o tratamento, retornando ao Brasil para continuarem o acompanhamento na Unicamp.

A coordenadora do Hemocentro e professora do Departamento de Clínica Médica (DCM) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, Sara Teresinha Olalla Saad, conta que desde essa época o Hemocentro passou a investir em pesquisas na área da terapia gênica, acreditando no potencial desse tratamento para enfrentar doenças genéticas. “São quase três décadas de atuação nessa área. Ainda nos anos 1990, realizamos os primeiros estudos e ensaios preliminares, investimos em infraestrutura e recursos humanos e tivemos o nosso primeiro paciente tratado com essa terapia.”

Na trajetória do Hemocentro no campo da terapia gênica, Saad cita pesquisadores da Unicamp que trabalharam para o avanço das pesquisas dentro da Universidade, com consequente expansão das instalações físicas do centro. Entre eles: Fernando Costa e Cármino Antônio de Souza. Ela destaca ainda que, atualmente, graças aos trabalhos conduzidos pela também docente do DCM Margareth Castro Ozelo, o Hemocentro está entre os melhores centros de pesquisa do mundo nessa área.

“Somos reconhecidos internacionalmente como um centro de referência de terapia gênica para hemofilia. Além de publicarmos em revistas de grande impacto, oferecemos cursos a médicos de outros países interessados no protocolo terapêutico, interessados em conhecer o nosso serviço e entender quais as estratégias de tratamento e acompanhamento dos pacientes hemofílicos”, conta.

Margareth Ozelo
A coordenadora da pesquisa, Margareth Ozelo: a terapia gênica como alternativa à terapêutica tradicional

À frente das pesquisas envolvendo terapia gênica no tratamento da hemofilia desde 1998, Ozelo destaca os avanços conquistados no tratamento da doença nas últimas décadas. Ela conta que por muito tempo os pacientes com hemofilia dependeram de transfusões de sangue constantes. A terapêutica da doença, então, evoluiu para a utilização de fatores derivados do plasma humano. Logo em seguida passou ao uso de fatores recombinantes, ou seja, fabricados em laboratório. Mais recentemente há diversas estratégias, incluindo o uso de anticorpos monoclonais e de outras moléculas.

No caso dos pacientes com hemofilia, a terapia gênica desponta como uma alternativa à terapêutica tradicional, que consiste na administração intravenosa dos fatores VIII (hemofilia A) ou IX (hemofilia B), proteínas que fazem parte do processo de coagulação do sangue. Na terapia gênica, por sua vez, ao invés de receberem a administração desses fatores, os pacientes recebem, por meio de uma infusão intravenosa, vetores contendo um material genético, uma sequência de DNA, que vai para o interior de uma célula-alvo que passará a expressar as proteínas desejadas. No caso da hemofilia, as células do fígado são o alvo que recebe o material genético por meio de um vetor viral, o adenovírus associado (AAV). Essas células então passam a expressar o fator VIII ou o fator IX.

Em 2019, o Hemocentro da Unicamp recebeu autorização para iniciar o tratamento dos pacientes com a terapia gênica. Desde então, a unidade integra cinco grandes estudos no mundo nessa área, tendo realizado a infusão da terapia em 38 pacientes. “De longe, é o centro que mais fez uso dessa técnica em todo o mundo”, afirma Ozelo.

Somente no Brasil são mais de 13 mil pacientes com hemofilia, que recebem o concentrado de fator pelo Sistema Único de Saúde (SUS), gratuitamente. Para Ozelo, a utilização da terapia gênica em maior escala, além de oferecer melhores benefícios aos pacientes, tem potencial de reduzir os custos do tratamento ao longo dos anos, uma vez que a maioria dos pacientes que o receberam não necessitaram de outras terapias, no caso de muitos deles há mais de quatro anos.

“Poder tratar essa população de pacientes, que é bem controlada, também nos dará a possibilidade de desenvolver mais conhecimentos na área de terapia gênica, com vistas a utilizá-la no tratamento de outras doenças congênitas raras e mesmo daquelas não hereditárias”, argumenta.

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Equipe do Hemocentro analisa dados em equipamento; a utilização da terapia gênica em maior escala, além de oferecer melhores benefícios aos pacientes, tem potencial de reduzir os custos do tratamento ao longo dos anos

Ainda de acordo com a docente da FCM, todos os pacientes com hemofilia tratados com terapia gênica, no Hemocentro, são classificados como graves – ou seja, que não produziam os fatores VIII ou IX e que apresentavam muitos sangramentos. Hoje, a maioria deles estão com níveis leves da doença, ou mesmo sem nenhum sinal dela, embora haja uma grande variação da resposta. Em alguns casos, houve uma diminuição ou mesmo uma perda de grande parte da expressão.

“Desde 2019, acompanhamos pacientes que, após uma única infusão da terapia gênica, nunca mais precisaram receber nenhum outro tipo de tratamento adicional, ainda que apresentassem uma resposta transitória ou pouco expressiva”, comenta a pesquisadora ao falar sobre os desafios que ainda estão colocados no tratamento da hemofilia.

Segundo a pesquisadora, no caso dos pacientes com a hemofilia A – mais prevalente na população –, os pesquisadores observam que, embora muitos tenham apresentado uma ótima resposta inicial à terapia, passam a sofrer uma queda na expressão do fator VIII. O mesmo não acontece com os pacientes com a hemofilia B, nos quais a tendência é de, após a infusão, permanência da resposta na forma de expressão do fator IX.

“O que temos observado em todos os protocolos de tratamento é que ainda não é possível predizer a resposta do paciente à terapia gênica, de modo que alguns respondem muito bem ao tratamento, enquanto outros não apresentam uma resposta tão adequada. Parte dos esforços da comunidade científica, hoje em dia, é descobrir os elementos que determinam quais pacientes terão boa resposta ao tratamento e quais não terão”, conclui Ozelo. Os resultados dessas pesquisas têm sido publicados nos principais periódicos internacionais focados nesse tema, entre os quais, o The New England Journal of Medicine, o Experimental Biology and Medicine e o Journal of Thrombosis and Haemostasis.

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