
Os 100 anos de uma teoria voltada à emancipação
Obra revisita arquivos de intelectuais da Teoria Crítica e Marcos Nobre aborda contribuições da corrente de pensamento

Em 1933, com a ascensão do nazismo na Alemanha, os intelectuais do Instituto de Pesquisa Social (IPS) precisaram fugir às pressas. Iniciava-se, naquele período, um regime autoritário que, além de pregar a superioridade ariana, perseguiu intelectuais, buscando a aniquilação do pensamento divergente. O IPS, oficialmente instituído em 1924, foi depredado, e seus materiais, perdidos. No entanto, Walter Benjamin, Max Horkheimer, Jürgen Habermas e diversos outros intelectuais do Instituto buscaram salvar o que podiam. Na evasão forçada, distribuíram e enviaram correspondências, manuscritos e demais documentos a familiares e amigos que viviam em locais onde a ameaça não havia chegado.
Para o centenário de fundação do IPS, o professor Marcos Nobre, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e a professora da Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Isabelle Aubert, organizaram o livro Os Arquivos da Teoria Crítica. Na obra, pesquisadores analisam os arquivos de intelectuais desta corrente de pensamento, orientada por um fio em comum: a emancipação. Conforme Nobre, o trabalho oferece a possibilidade de reconstrução da produção dos autores da Teoria Crítica, por meio da análise de materiais como manuscritos, anotações, cartas e transcrições de gravações.
O livro foi lançado pela Edições Sesc e conta com uma contribuição de peso de intelectuais brasileiros (dos 24 pesquisadores envolvidos no livro, 10 são do Brasil). Para o professor, a participação dos cientistas do país na obra e na pesquisa vinculada à Teoria Crítica mostra que a produção ocorre em pé de igualdade com países do Norte global, graças ao financiamento de órgãos de pesquisa como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Nobre fala sobre o trabalho com os arquivos, em parte destruídos por um regime “de exclusão de todos os opositores, de perseguição, prisão, tortura e morte”. Também indica contribuições dos intelectuais desta corrente, para os quais a teoria e a prática andam lado a lado. Segundo o docente, por terem sempre pensado o autoritarismo, inclusive antecipando tendências autoritárias entre famílias operárias na Alemanha, os teóricos críticos oferecem um arcabouço para o diagnóstico e enfrentamento de novas formas de autoritarismo.
Jornal da Unicamp — Como foi o trabalho, ao longo desses 100 anos, para reunir esses arquivos? E qual é o atual estado deles, depois que se dispersaram em função da perseguição nazista?
Marcos Nobre — Os arquivos variam muito de estado, não só de conservação e de catalogação, mas também da amplitude. Vários intelectuais tiveram que sair às pressas da Alemanha devido à tomada do poder por [Adolf] Hitler, e não só a partir de quando ele se torna chanceler, mas desde quando começa o processo de tomada do poder, de exclusão de todos os opositores, de perseguição, prisão, tortura e morte. Muita coisa foi perdida nessas circunstâncias.
O Instituto de Pesquisa Social foi fundado ele mesmo como um arquivo do movimento operário, reunindo todo tipo de material, como livros produzidos no contexto do movimento, fotos e panfletos. O Instituto tinha uma biblioteca impressionante já na década de 1920. A partir do momento em que Carl Grünberg [primeiro diretor do IPS] tem um acidente vascular cerebral, e fica impossibilitado de continuar como diretor, Max Horkheimer torna-se professor e assume o IPS. A partir daí, cria-se um projeto, uma nova maneira de pensar a pesquisa materialista, que é a interdisciplinaridade. Isso foi muito inovador para a época, porque a ideia de interdisciplinaridade não existia. E aí começou o que a gente chama de Teoria Crítica.


Com a chegada de Hitler ao poder, o Instituto teve que se mudar para Genebra, depois para Paris e depois para Nova Iorque. Ele foi fugindo da guerra e, com isso, perdeu-se muita coisa, porque os nazistas depredaram a sede do Instituto em 1933 e um novo prédio foi construído a partir de 1950, quando o Instituto retornou para a cidade de Frankfurt. A partir desse retorno, cria-se um mito, que é o mito da Escola de Frankfurt. Mas nunca houve uma escola, porque as pessoas não tinham as mesmas posições, nem políticas, nem teóricas, e por 17 anos o IPS não ficou em Frankfurt. Temos uma corrente de pensamento que não tem teses dogmáticas partilhadas por todos, mas sim uma maneira de pesquisar, de pensar e de intervir no espaço público que tem muitas afinidades.
Do ponto de vista dos arquivos, eles são desiguais, tanto em relação ao material quanto ao estado de catalogação e de conservação. Um caso específico que resolvemos incluir nesse livro, apesar de não ter uma relação com o Instituto de Pesquisa Social, refere-se aos arquivos Marx e Engels. Por quê? Não só porque a Teoria Crítica é ela mesma uma vertente do marxismo, mas também porque o Instituto, no seu início, teve uma relação muito importante com o projeto dos arquivos Marx e Engels.
JU — Outro caso particular é o do Habermas, que está vivo e envolvido na organização do seu próprio arquivo.
Marcos Nobre — E é interessante porque, em alemão, existe uma expressão para espólio (Nachlass). Para o caso de Habermas, tiveram que usar uma palavra para um espólio de alguém vivo (Vorlass). Habermas foi muito solícito com a gente, permitiu que publicássemos duas cartas e nós ficamos muito contentes de ter a possibilidade de mostrar o tipo de material que se pode encontrar nos arquivos dele.
JU — Retomando a questão do arquivo Marx e Engels, no primeiro capítulo, Olavo Ximenes traz uma reflexão sobre o distanciamento da práxis dos intelectuais marxistas atualmente. Quais os recados que o livro dá sobre isso?
Marcos Nobre — Esse é um ponto crucial porque o padrão que foi dado por Marx e Engels, não só pela obra teórica, mas também por sua militância, foi de uma união entre teoria e prática. Essa ideia foi elaborada por um teórico húngaro, no início da década de 1920, György Lukács.
Basicamente, essa vertente intelectual diz o seguinte: uma sociedade sem dominação é possível. E quando se diz que uma sociedade sem dominação é possível, coloca-se em questão toda produção que considera a dominação como algo inevitável e natural em qualquer formação social.
No marxismo, existe uma orientação para a emancipação que está no cerne da teoria. Isso não significa que a teoria está submetida à prática, mas que a teoria é pensada tendo em vista a emancipação e, portanto, ela tem essa ligação com a prática, e a própria prática também se torna um novo objeto para a teoria. À medida que você vai agindo, você vai pensando também a sua ação.
Quando a Teoria Crítica nasce, na década de 1930, ela nasce com esse espírito da união de teoria e prática. Ao mesmo tempo, para que fosse mantida a pluralidade de perspectivas e de posições dentro do Instituto, não seria possível defender uma forma específica de prática, porque isso restringiria o pensamento e a pesquisa. Essa é uma noção de tolerância em que se pensa: nós estamos orientados para a prática dirigida para e pela emancipação, mas não para uma prática determinada de um partido, de um determinado grupo.
A Teoria Crítica, no fundo, diz que, para manter a pluralidade da pesquisa e a pluralidade de prognósticos, ao mesmo tempo em se está em colaboração interdisciplinar, você não pode ter uma prática determinada. Isso, muitas vezes, é confundido com não ter prática nenhuma.
Então é preciso pensar uma teoria que permita práticas concretas e diferentes, sem perder o vínculo com a prática orientada para a emancipação. E assim você consegue manter a autonomia da teoria em relação à prática e consegue manter uma pluralidade no que diz respeito às práticas. Esse é o princípio.
JU — Por ter pluralidade é que não se pode falar que é uma escola?
Marcos Nobre — Sim, por conta dessa pluralidade. Não dá para falar em escola porque não existem teses comuns que todos partilham. O que partilham é um jeito de trabalhar, vamos dizer assim, que pensa a teoria orientada para a emancipação, e que pensa uma maneira de colaboração entre as disciplinas. Porque, veja, se a teoria está orientada para a emancipação, a questão é a seguinte: o que, do ponto de vista da situação atual do mundo, pode favorecer ou bloquear a emancipação? E isso é o que a gente chama de diagnóstico do tempo presente. Ou seja, estão todos orientados para produzir diagnósticos do tempo presente que possam revelar os elementos potenciais de emancipação e os bloqueios à emancipação.
Mas não existe um diagnóstico do tempo presente que seja comum a todos. Existe uma disputa saudável entre as pessoas que colaboram neste projeto interdisciplinar com muita discussão interna. Isso é muito interessante da pesquisa em arquivos, porque você tem acesso aos protocolos de discussão e são discussões muito acirradas. Isso permite ver uma colaboração interdisciplinar muito fecunda na divergência, não só na convergência.


JU — Qual o legado que os intelectuais oferecem para pensarmos o momento atual, em que existem projetos políticos e de sociedade autoritários?
Marcos Nobre — Então, esse é um dos aspectos que atravessa toda a Teoria Crítica. Esses 100 anos de Teoria Crítica são marcados por pensar tendências autoritárias na sociedade atual. O diagnóstico do tempo presente significa que temos que ter clareza de que essa ameaça autoritária não se apresenta sempre da mesma maneira, porque também o capitalismo muda. No fundo, o que a Teoria Crítica está dizendo é que enquanto houver dominação, a ameaça autoritária estará presente. Só uma sociedade sem dominação é uma sociedade que poderá, de fato, pensar abertamente qualquer tendência autoritária e poderá, portanto, elaborá-la da maneira correta.
Uma das conferências de Adorno de 1967, e que foi publicada recentemente – mais um trabalho de pesquisa em arquivo-, era justamente sobre a nova ascensão da extrema direita na Alemanha e na Áustria depois da Segunda Guerra Mundial. Então a Teoria Crítica sempre está atenta a isso, e eu acho que isso é um dos grandes legados, um dos grandes reservatórios potentes da Teoria Crítica para pensar o momento atual. Sempre fazendo essa ressalva de que em cada momento a configuração da dominação é diferente e, portanto, são diferentes as ameaça autoritárias. Não devemos simplesmente transpor. Faz parte dessa tradição tentar entender fenômenos como o do antissemitismo, que veio junto com o autoritarismo nazista e fascista. Então nós temos isso permanente na Teoria Crítica até hoje. A questão, claro, seria pensar: dado esse reservatório intelectual, que instrumentos eles nos fornecem para pensar a forma que o autoritarismo tem hoje? Isso é interessante, porque eles perceberam muito cedo o autoritarismo que enfrentaram. A Teoria Crítica é um empreendimento interdisciplinar que pela primeira vez incluiu a psicanálise como um dos elementos importantes desse consórcio interdisciplinar. E justamente é um psicanalista, o Erich Fromm, que começa a liderar uma pesquisa, ainda em 1929, sobre o autoritarismo nas famílias operárias da Alemanha, com resultados assustadores. Então, quando Hitler chega ao poder, o Instituto inteiro já estava preparado para se mudar para a Suíça, porque eles tinham a clareza de que a probabilidade do autoritarismo chegar ao poder era muito alta. Então eles abriram um escritório em Genebra antes, transferiram os fundos que eles tinham para Holanda, para se preparar para esse eventual regime totalitário, que infelizmente acabou acontecendo.
Quando a gente olha essa experiência, todos os movimentos autoritários eram contra a democracia. É diferente do autoritarismo atual, em que os autoritários se reivindicam como os verdadeiros representantes da democracia. Essa diferença é muito importante. Claro que também lá na República de Weimar, de 19 até 33, também se utilizaram da democracia para destruir a democracia, só que não em nome da democracia. Isso é que é interessante. Então, por exemplo, a gente viu no Congresso aquele motim de deputados [ocorrido no dia 5 de agosto em reação a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro] que impediu o funcionamento democrático das instituições de forma claramente autoritária. Houve aquela cena de utilização de esparadrapos na boca para dizer que a liberdade de expressão tinha sido tolhida. Isso é exatamente o que Hitler e seus asseclas fizeram em 1928. Então nós temos muitos elementos semelhantes. A direita alemã tinha absoluta certeza de que ela ia “jantar” a extrema direita, que ia usar o Hitler e colocá-lo em um cantinho. Essa é a expressão que eles usavam. E vimos o que aconteceu.
