Da história para o lúdico
Da história para o lúdico
Jogos de tabuleiro e romance de fantasia são desenvolvidos por historiador aficionado por período medieval

Vinicius Marino não é um historiador comum. Realizando sua pesquisa de pós-doutorado em História na Unicamp, onde ministra uma disciplina sobre jogos e história, ele transita entre mundos aparentemente distantes: a Irlanda medieval, os games acadêmicos, a cultura pop e a literatura de fantasia. Sua trajetória inclui simulações computacionais sobre o clima da Irlanda no século XIV, jogos de tabuleiro e agora um romance de fantasia que levou uma década para ser publicado.
A Trama do Mundo, classificado como fantasia urbana, é uma releitura de O Colóquio de Oisín e Patrício, texto medieval irlandês que narra a história mítica de Oisín, um herói que se apaixonou por uma fada e viveu em Tír na nÓg (a “Terra da Juventude”). Ao retornar ao mundo real, descobriu que 300 anos haviam se passado e encontrou uma Irlanda já cristianizada, onde conheceu São Patrício.
A obra se estrutura em duas narrativas paralelas: uma no plano da fantasia, enraizada na mitologia celta e outra estabelecida em São Paulo. “Sou paulistano e achei que essa escolha ia despertar certa autenticidade nos leitores”, explica Marino. Para ele, o contraste entre o mundo da fantasia e um local que existe de verdade fortalece o senso de dualidade da narrativa.
Mas por que um historiador especializado em Irlanda medieval decide escrever literatura de fantasia? “Sempre tive um interesse particular pela fantasia, sobretudo por como esse gênero permite que questionemos algumas das certezas da nossa época”, explica. Para o historiador, a especulação funciona como experimentos de pensamento que colocam ideias em perspectiva.
Raízes irlandesas
A história do pesquisador com a Irlanda começou na adolescência, quando morou no país por seis meses. O poeta William Butler Yeats, do século XIX, o impressionou, assim como a língua irlandesa — o gaélico — e sua história, reprimida pelo processo de colonização.
O interesse ganhou forma quando seu pai lhe deu o livro Um Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce. “Fiquei fascinado”, relembra. Durante o intercâmbio no ensino médio, comprou O Senhorio da Irlanda na Idade Média, do historiador James Lydon, que ele considera crucial para sua carreira acadêmica.
Esse livro abordava um período pouco estudado: a Idade Média pós-conquista inglesa. “Mesmo aqui no Brasil, quem trabalha com a Irlanda geralmente foca no início do cristianismo”, explica. O que o intrigava, conta, era a trajetória dos irlandeses celtas que não desapareceram após a invasão inglesa, mas continuaram a criar suas próprias tradições, revelando resistência e permanência cultural.
Na graduação em História na Universidade de São Paulo (USP), começou a trabalhar com história medieval desde a iniciação científica. Mas não foi nesse momento que conseguiu unir seus dois interesses. “Eu não dominava o irlandês, tinha medo de lidar com isso academicamente e não encontrei ninguém no Brasil que estudava isso”, conta. Foi só no mestrado que decidiu “unir o útil ao agradável” e se tornar especialista na história da Irlanda.
Durante o doutorado, passou um ano no Trinity College Dublin, onde, além de se aprofundar na história do país através de documentos locais, começou a estudar irlandês formalmente — o que fazendo até hoje por meio de cursos online.


O lúdico como método
Paralelamente à formação como medievalista, Marino desenvolveu interesse por games como ferramentas de pesquisa. Seu doutorado em história econômica foi heterodoxo: criou uma simulação computacional para investigar se eventos climáticos ocorridos na Europa, no século XIV — a pequena era do gelo —, influenciaram a economia da Irlanda.
Transformou essa simulação em um jogo de tabuleiro chamado “O Triunfo de Tarlac”, ambientado numa guerra irlandesa do século XIV. “Achei que o jogo seria apenas uma ferramenta para entender o modelo, mas quando terminei, percebi que era mais interessante que a simulação. Isso me fez pensar que talvez devesse investir mais no lúdico e menos na computação.”
Segundo ele, “o lúdico é inerentemente subversivo”. Numa simulação computacional, os resultados seguem parâmetros estabelecidos. Num jogo com pessoas, “os seres humanos podem decidir jogar fora das regras, fazendo coisas deliberadamente anti-históricas”. Essa natureza especulativa — “eu sei que preciso ir para cá. E se eu for para lá?” — permite “brincar” com a história de maneira diferente.
Marino integra o grupo de pesquisa Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas (Arise), dedicado ao desenvolvimento de jogos acadêmicos. Entre os projetos em que colaborou está Sambaquis: uma história antes do Brasil, sobre história indígena brasileira, que teve impacto significativo em escolas. No pós-doutorado, desenvolve Galar (doença em irlandês), um game sobre a peste na Irlanda do século XIV contada do ponto de vista da própria doença, baseado em anais irlandeses medievais.

Do game à literatura
Foi no cruzamento entre pesquisa histórica, games e cultura pop que nasceu A Trama do Mundo. Frequentador de convenções nerds e observador atento de práticas como cosplay e fanfics, Marino testemunhou a expansão dessa cultura, que antes ocupava nichos pequenos.
O mito de Oisín ofereceu a estrutura narrativa para mesclar seus interesses. O conceito de mito é central no livro: histórias que se descolam do contexto original e são naturalizadas, transformando-se em verdades inquestionáveis.
A obra acompanha quatro personagens imersos no mundo das convenções que passam por “uma experiência de reencenação múltipla” e são transformados. A protagonista é uma cosplayer. “De todas as formas lúdicas da cultura pop, essa é uma das que mais diretamente envolve afetos. As pessoas estão literalmente se vestindo e reencenando cenas das histórias”, explica, destacando o “potencial subversivo” dessa prática quando pensada de forma crítica.
Atualmente, Marino integra o Centro de Estudos da Diversidade Antiga(Ceda), fundado em 2024 pela professora Neri de Barros Almeida, sua supervisora no pós-doutorado. Segundo ele, o grupo nasceu de uma aliança entre pesquisadores que estudam sociedades antigas sob diferentes perspectivas: letras clássicas, filosofia, história e arqueologia.
“A professora Neri quis criar esse espaço para que nós, que lidamos com esse passado muito antigo e enfrentamos dificuldades distintas, pudéssemos nos reunir”, explica Marino. O historiador destaca que uma das questões fundamentais do grupo é repensar a forma como esses períodos históricos são tradicionalmente categorizados.
