Campinas teve mais mortes no trânsito durante a pandemia
Motociclistas foram os mais atingidos, evidenciando vulnerabilidades de entregadores


Durante a pandemia de covid-19, a circulação de veículos caiu de maneira expressiva em Campinas. O fechamento de atividades comerciais, a adoção do trabalho remoto para parte dos trabalhadores e o isolamento social reduziram em 32% o volume diário de tráfego. A expectativa era que, com o menor fluxo de carros, motos e ônibus, as mortes no trânsito também diminuiriam. Mas uma pesquisa feita pela Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp revelou um fenômeno oposto: a mortalidade aumentou.
A constatação faz parte da tese de doutorado do pesquisador e cirurgião do trauma Vitor Favali Kruger, defendida na FCM sob orientação do médico e chefe da Disciplina de Cirurgia do Trauma, Gustavo Pereira Fraga. Kruger analisou 17.726 sinistros de trânsito registrados na cidade entre 2019 e 2023, dos quais 406 foram fatais.
O pesquisador dividiu os dados em três períodos — pré-pandêmico, pandêmico e pós-pandêmico — e constatou que a taxa de mortalidade passou de 10,46 para 13,76 por 100 mil habitantes justamente no período em que havia menos veículos circulando. “Era esperado que o isolamento resultasse em queda das mortes, mas o que vimos foi maior gravidade e maior letalidade dos sinistros”, conta Kruger.
Antes da pandemia, havia uma morte a cada 2,9 dias em Campinas. Durante a emergência sanitária, esse intervalo caiu para uma a cada 2 dias.
Trauma, doença negligenciada
O uso da palavra sinistro na fala de orientando e orientador, no lugar da palavra acidente, não é por acaso. “Não usamos o termo acidente porque a palavra sugere acaso. Mais de 90% dos casos poderiam ser prevenidos. Trauma é uma doença negligenciada”, afirma Fraga.
A pesquisa insere-se na linha de estudos da disciplina de Cirurgia do Trauma da Unicamp. Seus pesquisadores dedicam-se a mostrar que o trauma precisa ser visto como questão de saúde pública. Segundo o médico, o desafio é fazer com que o tema ganhe relevância na agenda pública. “Estamos falando de algo que ocupa diariamente leitos hospitalares, centros cirúrgicos e recursos de emergência, mas que ainda é tratado como fatalidade. É uma doença evitável que precisa ser reconhecida e enfrentada como prioridade”, diz.
Entre os fatores que contribuíram para o aumento da mortalidade por sinistros em Campinas durante a pandemia, dois destacam-se: o excesso de velocidade e a associação entre álcool e direção noturna. Mesmo com menos veículos nas ruas, as infrações graves cresceram 27%. “A curva foi inversa: caiu a quantidade de tráfego, mas aumentaram as infrações graves. Isso é indicativo de que os condutores se sentiram mais seguros para cometer irregularidades”, explica Kruger. Outro ponto importante foi a gravidade dos sinistros, que aumentaram no período.
Os motociclistas concentraram a maior parte das mortes, representando 43% dos óbitos no período pré-pandêmico e chegando a 47% após a pandemia.
Parte desse aumento está relacionada às mudanças econômicas provocadas pela crise sanitária, avalia o autor da tese. Com a perda de empregos formais, muitos passaram a trabalhar em serviços de entrega, mesmo sem experiência suficiente ou habilitação profissional específica. “Não foi apenas o aumento de entregadores, mas também o ingresso de motociclistas amadores, em condição de vulnerabilidade econômica, que buscaram renda imediata nas plataformas. Esse perfil socialmente frágil foi o mais exposto.”

Impacto social

Um dos indicadores usados no estudo foi o de Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP), que mede a mortalidade precoce. Houve aumento de 26,7% durante a pandemia, com maior peso entre jovens em idade economicamente produtiva. “O trânsito, ao mesmo tempo que garante mobilidade e trabalho, também é o que retira essas vidas. O mesmo acesso que gera inclusão social é o que mata os mais vulneráveis”, diz Kruger.
Esse dado mostra, segundo o cirurgião, que as consequências ultrapassam a vítima individual. Quando um jovem morre no trânsito, toda uma rede é impactada: familiares perdem a principal fonte de renda, dependentes ficam desassistidos e o sistema previdenciário absorve os custos da perda de produtividade. O peso não é apenas humano, mas também econômico e social.
No Hospital de Clínicas da Unicamp (HC), referência para o atendimento de trauma na região, a rotina confirma os números. Segundo Fraga, o hospital recebe em média cinco vítimas graves de trânsito por dia, sendo a maioria motociclistas. Esses atendimentos mobilizam múltiplas equipes médicas, ocupam leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e centros cirúrgicos de urgência.
“São recursos que poderiam estar destinados a pacientes com câncer, problemas cardíacos ou neurológicos, mas que precisam ser usados para ocorrências de trânsito. Como se tratam de urgências, o sistema dá prioridade”, afirma o professor.
Desafios da pesquisa
Kruger destaca que um dos maiores obstáculos para a realização da tese foi a limitação e a fragmentação dos dados disponíveis no Brasil. “Fazer pesquisa em trânsito ainda significa lidar com lacunas. As bases oficiais não são completas nem padronizadas. Foi preciso cruzar dados da Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (EMDEC) e da plataforma Infosiga-SP e enfrentar a ausência de registros consistentes sobre fatores de risco. Esse foi um desafio importante da pesquisa”, conta.
A dificuldade metodológica, pontua, reforça a necessidade de investir em sistemas de informação mais robustos, capazes de orientar políticas públicas baseadas em evidências. “Correlação não é causalidade. Tivemos que trabalhar com cautela, evitando conclusões simplistas. O que mostramos foi uma associação clara: o tráfego caiu, mas as mortes aumentaram e a gravidade se intensificou”, analisa.
Legado do paradoxo
A tese revela ainda que os comportamentos de risco no trânsito observados durante a pandemia se consolidaram e permaneceram no período pós-pandêmico, incluindo excesso de velocidade, direção noturna sob efeito de álcool e vulnerabilidade de motociclistas. Segundo Kruger, a pandemia expôs e consolidou fragilidades preexistentes no sistema de trânsito.
A projeção é alarmante: sem intervenções, Campinas pode atingir 26 mortes por 100 mil habitantes no trânsito até 2032, segundo o pesquisador. Para ele, as soluções para reverter essa tendência são aquelas já reconhecidas internacionalmente: educação em segurança viária desde a infância, melhorias na engenharia das vias, fiscalização efetiva das leis de trânsito e fortalecimento do sistema de atendimento a traumas.
