
A árvore genealógica que nunca existiu
A migração de retorno e a busca pela ancestralidade marcam a literatura da escritora pernambucana Marilene Felinto, que acaba de lançar Corsária
A árvore genealógica que nunca existiu
A migração de retorno e a busca pela ancestralidade marcam a literatura da escritora pernambucana Marilene Felinto, que acaba de lançar Corsária

A pernambucana Marilene Felinto persegue recordações que a levem de volta para onde nasceu. A escritora de 68 anos, que, aos 22, escreveu As Mulheres de Tijucopapo (relançado pela editora Ubu) e venceu o Prêmio Jabuti de 1982 de autora revelação, sofreu o que define como trauma quando, aos 11 anos, foi obrigada a deixar Recife e se mudar com a família para São Paulo. Em uma literatura marcada pela migração de retorno, a escritora está de volta com o romance Corsária (editoras Ubu e Fósforo), cuja protagonista empenha uma jornada de vingança em busca de sua ancestralidade e de um sobrenome que lhe foi negado.
Há três anos, a morte de sua mãe, Alaide Barbosa de Lima, a quem dedica o livro, levou-a à sua nova aventura. “Foi como uma avalanche. Percebi que havia uma longa história que eu queria contar para resgatar algo que eu perdi”, afirma Felinto, que lançou o livro no Colóquio Internacional Exodus e Grupo de Estudos em Didática da Literatura (GEDLit), no início de outubro, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Se, em As Mulheres de Tijucopapo, a narradora faz o trajeto de volta a uma terra mítica, uma localidade fictícia onde sua mãe teria nascido, em Corsária a história gira em torno de outra narradora forte, que deixa uma vida confortável nos Estados Unidos com o propósito de esclarecer mentiras.
Sua mãe foi uma criança adotada aos quatro anos e Felinto pouco sabe sobre sua ancestralidade. “Em Corsária, o romance é uma tentativa de inventar esses dados, de recuperar, via invenção, uma árvore genealógica que nunca existiu. No livro, por acaso, a ascendência da protagonista é holandesa, mas nada disso é verdade, apesar de ter relação com a minha história pessoal”, destaca.
Em As Mulheres de Tijucopapo, Felinto buscou na recordação de um livro infantil a inspiração para a narrativa, que se concentra em um acontecimento de 1646, no qual 600 soldados holandeses foram derrotados por mulheres de uma vila em Pernambuco. “Vou ter que ver por que minha mãe nasceu lá em Tijucopapo. E, caso haja uma guerra, a culpa é dela”, escreve no livro.
Em Corsária, as histórias de como se deu a invasão holandesa também vieram das memórias de seu tempo de escola. “Nem sei se hoje há aulas sobre os holandeses, mas eu me lembro”. Não houve intenção de ligar um livro ao outro, garante. “São movimentos diferentes. No primeiro, a protagonista faz uma viagem de retorno do Sudeste para o Nordeste. Agora, ela vem do estrangeiro, de fora daquela realidade.”
Felinto ficou 16 anos sem publicar até que, em 2023, retornou com Mulher Feita e Outros Contos (editora Fósforo). “Eu nunca parei de escrever, mas fiquei quieta no meu canto, sem saber se iria publicar. O mercado editorial mudou muito, antes era dominado por homens brancos e eu tinha dificuldade, mas, agora, há muitas mulheres editoras, mais abertas ao diálogo.”


Novas abordagens
A autora, que mora em São Paulo, conta que viaja muito a Recife, mas leva consigo a certeza de que aquela cidade de sua infância não existe mais. “Volto porque busco as marcas da minha cultura, a praia, a comida, as frutas que não encontro”. Em setembro, retornou para participar da Feira Literária das Periferias de Pernambuco (Flupe) e trouxe na bagagem de volta algumas reflexões. “Sinto um estranhamento no modo de avaliar e divulgar a literatura que é feita hoje, das abordagens pelo engajamento. O modo como entendo a literatura como exercício estético, que elaboro a partir do sentimento do mundo e do efeito da vida sobre mim, não vem a partir de marcadores sociais, embora eles estejam presentes nos meus textos.”
“Não há como negar a importância desses movimentos, mas sou de um tempo em que não existia nem mesmo o conceito de periferia. Era tudo pobreza”, continua. Em sua missão de proteger sua escrita do que chama de “captura dos chamados movimentos identitários”, Felinto, porém, ressalta: “Eu sei o que é exclusão.”
“Para minha surpresa, me alçaram a um lugar de inspiração, um exemplo de superação. Mas, com a pulverização das feiras literárias, que é um fato, quem legitima quem? Senti um incômodo, uma sensação de deslocamento, de estar ali, mas com a sensação de não pertencer”, completa. A autora destaca que, circunscritos como “periféricos”, autores correm o risco do isolamento, de “estarem em um bolsão a ser ainda mais discriminado pelo preconceito de quem está fora.”
“Minha literatura não tem como disparadora a minha condição de mulher, negra, pobre e nordestina, não escrevo a partir de temas ou teses, não faço militância em literatura”, define. “Não escrevo por isso, mas a partir disso, de ser mulher, negra, pobre e nordestina. Não nego ou renego, mas o trauma da migração é o grande disparador da minha literatura.”
Felinto, formada em Letras na Universidade de São Paulo (USP), destaca que a universidade operou uma virada em sua vida. “Era um época sem política de cotas ou bolsas de permanência. Eu ralei muito para me formar. Considero a política das cotas a mais importante ação da educação deste país, algo que eu precisei tanto e não tive.”
A escritora admite que não lê novos autores e nem mesmo teve a curiosidade de conferir como ficaram as traduções de As Mulheres de Tijucopapo para inglês, francês, holandês e catalão. “Não tenho mais tanto tempo nessa vida.”
Com a ajuda de um sobrinho, é presente nas redes sociais e acredita que a inteligência artificial é “um espetáculo de invenção”. A autora, que se define como “curiosa e adepta”, ressalta que não tem nenhuma antipatia pelo mundo conectado. “Acho que as redes sociais são ferramentas interessantes, depende de onde se vai e para quê servirá tanta tecnologia.”
Na juventude, conta, tinha ousadia para criticar. “Mas não tenho mais o que fazer com o que não tem conserto”, diz, resignada. “Nessa atmosfera de fim de mundo, vai sobrar para os jovens operar a tarefa hercúlea de, além da luta contra o fascismo, operar a defesa e o conceito de nação frente à pressão das big techs.”
TRECHO DE CORSÁRIA
“Vim até aqui para um acerto de contas, para descobrir por que o sobrenome Lichthart foi omitido dos documentos de minha mãe, por que negaram a ela essa identidade de filha que deveria ter sido legalmente adotada. Por parte de pai, um de meus sobrenomes deveria ser van Waerdenburch, nome de proprietário, de donos de vastas extensões de terra de lavoura e gado, exploradores do trabalho braçal de meus tataravós, bisavós, avós.
Minha questão é a indenização por danos, pela herança adulterada, não é o status do nome holandês — e pouco me importa a outra origem fundadora das genealogias rarefeitas, pouco me importa o sobrenome de quem veio de que reino de Miragaia, os navegantes que aqui se instalaram como se esta fosse terra de Seu Ninguém. O que eles não sabiam (e não sabem) é que Seu Ninguém sou eu, Seu Ninguém é meu pai e é minha mãe. Pouco me importa em que século chegaram, em que ano da fundação de povoados seculares como Igarassu, pouco me importa aqueles de sobrenome “de Tal e Tal” que se assenhorearam por completo do país, alastrando-se terra adentro, de norte a sul, impondo seus Dias, seus Nascimento e seus Assunção aos aborígenes, aos escravizados de todo tipo. O sobrenome deles eu conheço, sei de onde vem. Sei que mal causaram. Minha questão é o nome ocultado, a herança usurpada, para além do outro dano infligido.”
