
Unicamp e Ministério da Justiça avançam na identificação de drogas emergentes
Pesquisadores detectam novas substâncias psicoativas e contribuem para consolidar sistema de alerta rápido
Unicamp e Ministério da Justiça avançam na identificação de drogas emergentes
Pesquisadores detectam novas substâncias psicoativas e contribuem para consolidar sistema de alerta rápido

Uma nova droga foi detectada pela primeira vez no Brasil em julho de 2025. Testes
realizados pelo Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) de Campinas, ligado à Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e ao Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, identificaram a presença do composto N-pirrolidino protonitazeno, um opioide sintético da classe dos nitazenos, altamente tóxico. A substância foi identificada no atendimento de um paciente com um quadro de intoxicação grave. Segundo as informações enviadas à Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o paciente relatou sonolência, seguida de perda de consciência, após ter ingerido um comprimido de substância estimulante. Devido à gravidade do caso, foi necessária a administração de naloxona, um antídoto para intoxicações por opioides.


“A sorte é que o plantonista que o atendeu no HC é médico do Ciatox e identificou os efeitos de um opioide”, conta José Luiz da Costa, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) e coordenador-executivo do Ciatox. A análise toxicológica revelou a presença da substância na concentração de 3 ng/mL (nanogramas por mililitro) no sangue e 1 ng/mL na urina. Ainda foram detectadas outras substâncias psicoativas no sangue do paciente, como MDA e catinonas sintéticas (drogas estimulantes) e álcool (droga depressora).
Casos como este, envolvendo um nitazeno, ilustram os desafios que profissionais da saúde, segurança pública, justiça e assistência social enfrentam com as chamadas novas substâncias psicoativas (NSP), drogas criadas a partir de pequenas alterações na estrutura molecular de substâncias já conhecidas e controladas. Elas produzem efeitos semelhantes aos de drogas clássicas, como os estimulantes e os alucinógenos, e escapam das normas e dos órgãos regulatórios. O risco de apresentarem um alto potencial tóxico combinado ao fato de serem ainda desconhecidas representa uma ameaça à saúde dos usuários de substâncias clássicas, que podem consumir NSP sem saber, e dificulta o trabalho de médicos e unidades de saúde, que não contam com recursos para sua detecção e tratamento de intoxicações.
A identificação do N-pirrolidino protonitazeno pelo Ciatox foi possível graças aos investimentos realizados no laboratório por meio de um convênio entre a Unicamp e a Senad. Firmado em 2022, com duração de três anos, o chamado Projeto Baco teve o objetivo de criar um sistema de informações sobre intoxicações causadas por drogas a partir de dados dos atendimentos feitos pelo Ciatox. Para isso, foram coletadas desde informações dos casos de emergência da Região Metropolitana de Campinas encaminhados à unidade, até a busca ativa de substâncias consumidas em festas de música eletrônica para a verificação da incidência de NSP. Além de ampliar a capacidade de ação do Ciatox, a iniciativa contribui para a consolidação do Sistema de Alerta Rápido Sobre Drogas (SAR), instituído pelo Ministério da Justiça no início deste ano.


Novas substâncias psicoativas
As substâncias psicoativas são controladas por meio de convenções internacionais das Nações Unidas. As duas principais são a Convenção Única Sobre Entorpecentes, de 1961, e a Convenção Sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971. Os dois documentos estabelecem listas de substâncias e de estratégias de controle de seu consumo, além de apontarem seus efeitos. Cada país tem autonomia para definir quais são consideradas legais em seus territórios — como é o caso de países onde a maconha é legalizada —, mas as convenções costumam ser levadas em conta. Conforme novas substâncias são descobertas e analisadas, os textos são atualizados.
As NSP são substâncias que não constam nessas convenções. Grande parte delas é produzida em países do Sudeste asiático e comercializada pela internet. “As pessoas as consomem para fins recreativos de forma indiscriminada até o momento em que elas são incluídas em algum tipo de controle internacional”, explica José Luiz da Costa. Segundo o professor, quando isso ocorre, é comum que elas deixem de ser encontradas e passem por novas alterações moleculares que as liberem das proibições. “É um mercado muito dinâmico”. Exemplos dessas novas substâncias são as catinonas sintéticas, de efeito estimulante, e os canabinoides sintéticos, que imitam o efeito do THC (tetrahidrocanabinol), presente na maconha. Segundo Costa, hoje existem cerca de 200 moléculas no grupo dos canabinoides sintéticos, cada uma delas fruto de alguma alteração molecular para driblar a proibição de outra. “Estamos na sétima geração de grupos diferentes dos canabinoides sintéticos”, comenta.
Desconhecer essas substâncias é um problema, pois os protocolos de atendimento dos serviços de saúde baseiam-se em substâncias já conhecidas e estudadas. Mesmo que seja possível identificá-las em amostras de sangue, trata-se de um procedimento difícil, que exige uma sofisticação tecnológica disponível em poucos laboratórios do país, além de serem exames feitos a reboque de quadros de intoxicação que poderiam ter sido evitados.
A solução encontrada foi buscar pelas NSP em sua fonte de consumo, para que fosse possível identificar tendências antes que um caso de intoxicação ocorresse. Os pesquisadores realizaram buscas ativas em festas de música eletrônica, locais em que o consumo de substâncias psicoativas é comum, aproveitando a abertura desses ambientes à cultura de redução de danos. “Em festas desse tipo, é comum encontrarmos pessoas interessadas em conhecer as substâncias e seus efeitos. São eventos com estandes informativos, para que as pessoas tenham conhecimento”, conta Náthaly Bueno, pesquisadora de doutorado ligada ao programa de pós-graduação em Farmacologia e ao Ciatox.


Não é só uma “bala”
O projeto visitou 14 eventos entre 2023 e 2025 em três Estados: São Paulo, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Em São Paulo, a busca ocorreu nas cidades de Araraquara, Assis, Campinas, Hortolândia, Mairiporã, São José dos Campos, Sorocaba e Taquaritinga. No total, o grupo coletou 1.565 amostras de saliva dos participantes das festas, que contribuíram de forma voluntária e anônima. Além de fornecer as amostras, o público respondia a um formulário com dados do perfil dos usuários e, depois, cada pessoa recebia um cartão para acesso ao resultado de seu exame toxicológico. Em todas as ocasiões, os pesquisadores contavam com a autorização dos organizadores dos eventos e aproveitavam a oportunidade para distribuir panfletos informativos e sanar dúvidas sobre o tema. “Não conseguimos fazer com que as pessoas não usem essas substâncias, então damos a elas meios para que não se intoxiquem”, afirma Bueno.
Antes da coleta, os participantes informaram se haviam usado substâncias psicoativas e quais tinham consumido. Um total de 70,8% declarou ter usado substâncias ilícitas, enquanto 26,7% negaram o uso. Os dados mostram que o consumo tinha sido recente: 72,2% afirmaram que consumiram as substâncias nos últimos três meses da coleta e 22,7% tinham feito uso há mais de três meses. O maior grupo informado foi o de substâncias psicoativas, como MDMA (conhecido como ecstasy), cocaína e metanfetamina, com 1.631 registros; seguidos dos depressores do sistema nervoso central (álcool, ansiolíticos e remédios como zolpidem), com 695 registros; e canabinoides, com 631 registros.
Os resultados dos testes foram divididos entre drogas clássicas e NSP. No primeiro grupo, predominaram a nicotina, presente em 72,3% dos exames; seguida do MDA (estimulante), em 71,7%; o THC (princípio ativo da maconha), em 48,7%; e o MDMA, em 47,5% dos testes. Os pesquisadores observam que os resultados mostram aspectos do consumo de várias substâncias ao mesmo tempo. É o caso da cocaína, que aparece em 22,2% dos exames, e de compostos como o cocaetileno (9,2%), que se origina da combinação dela com o álcool. Entre as NSP, destacam-se o MDEA, derivado do MDMA, em 9,3% dos exames; a desclorocetamina (3,1%), um derivado da cetamina (medicação anestésica); a dipentilona (2,9%) e a metilona (2,4%), duas catinonas sintéticas. “O cenário mais comum era o de policonsumo. A maior parte das amostras tinha entre seis e sete substâncias”, detalha Costa.
Após os exames, os participantes que acessavam seus resultados poderiam responder se aquilo estava de acordo com o que pensavam ter ingerido. “Muitos relataram que não sabiam que tinham consumido determinadas substâncias”, lembra Bueno. “Alegavam ter consumido uma ‘bala’ [droga, no jargão do usuário]. Mas o que há nessa ‘bala’? Pode haver várias coisas misturadas”. Dados como esses revelam um cenário preocupante. Além de desconhecerem as substâncias que consomem, muitos não levam em conta seus efeitos cumulativos. “Quando as pessoas são expostas a, por exemplo, um comprimido de MDMA, álcool e mais antidepressivos, todos eles terão efeitos no sistema nervoso central”, alerta Costa.
O coordenador ressalta que a pesquisa junto às festas mostra um resultado mais realista do consumo de substâncias psicoativas no país. Ele cita o exemplo da redução no consumo de MDMA, que não é produzido no Brasil, e o progressivo aumento do MDA, que tem registros de laboratórios clandestinos produtores no país. “A amostras de saliva coincidem também com dados de apreensões da polícia”, afirma. “Nossa abordagem funciona como um termômetro do que ocorre no mercado de drogas”.

ALERTA RÁPIDO
Expandir o foco do trabalho com substâncias psicoativas para além da segurança pública é um dos objetivos da Senad. “Fazemos um trabalho de comunicação com a sociedade. Não é apenas uma questão de repressão, envolve também uma perspectiva de redução de danos”, afirma Bárbara Caballero, diretora de Pesquisa, Avaliação e Gestão de Informações da Senad, divisão para a qual a parceria com a Unicamp contribui diretamente para que seja possível conhecer as substâncias em circulação no país e seu perfil de consumo. “No fim das contas, trabalhamos com a busca de informações para preservar a saúde das pessoas”.
Com o convênio, foram investidos R$ 2,2 milhões no Ciatox para a aquisição de equipamentos e insumos que ampliaram a capacidade de análises do laboratório e a manutenção de pesquisadoras dedicadas ao projeto. Também foram realizadas capacitações com peritos de todo o país para atuarem na detecção de NSP. Em 2024, foram formados 45 peritos e outros 30 devem participar da capacitação ainda neste ano. A ampliação quantitativa do Centro se reflete na qualidade dos serviços prestados: agora, o Ciatox busca obter junto à Coordenadoria Geral de Acreditação do Inmetro uma certificação internacional de acordo com a norma ABNT/NBR ISO/IEC 17025. Hoje, apenas dois laboratórios da Unicamp contam com essa certificação — a Central Analítica do Instituto de Química (IQ) e o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA) — e, entre os 32 Ciatox existentes no Brasil, nenhum conta ainda com essa certificação. “Faz falta no país um laboratório com essa capacidade”, analisa Caballero.
Os ganhos do projeto também fortalecem o Sistema de Alerta Rápido Sobre Drogas (SAR), lançado pela Senad neste ano. A ideia é que, com base em experiências como a detecção do nitazeno em Campinas, o segundo alerta emitido pelo SAR desde seu início, os demais laboratórios e centros de toxicologia do país estejam preparados para atuar na detecção de NSP e no atendimento a casos de intoxicações e, com isso, possam compartilhar suas informações e protocolos com outros laboratórios. “As drogas estão aí circulando, então vamos descobrir que substâncias são essas para contribuir com a saúde, o que serve de apoio depois para as ações de inteligência das polícias.”