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Imagem mostra uma cachoeira na cidade Brotas, com dois praticante de Rapel, pendurados iniciando a descida da cachoeira

O direito de correr riscos

Atividades extrapolam o esporte e contribuem para autoconfiança e autonomia dos participantes

Metodologia inclui pessoas com deficiência visual em esportes de aventura

O direito de correr riscos

Metodologia inclui pessoas com deficiência visual em esportes de aventura

Imagem mostra uma cachoeira na cidade Brotas, com dois praticante de Rapel, pendurados iniciando a descida da cachoeira
Atividades extrapolam o esporte e contribuem para autoconfiança e autonomia dos participantes

Na beira de uma cachoeira em Brotas, no interior do Estado de São Paulo, o barulho da queda d’água de dezenas de metros se mistura às instruções de um professor. Entre os praticantes que se preparam para a descida de rapel, alguns não enxergam o abismo diante de si. Guiados pela voz, pelo toque e por equipamentos sonoros, táteis e de segurança, enfrentam a mesma adrenalina que qualquer outro aventureiro. A cena, que para muitos poderia parecer improvável, é parte do trabalho do educador físico Artur José Squarisi de Carvalho, que se dedica, há mais de três décadas, a mostrar que pessoas com deficiência visual também têm direito ao risco.

“Diziam que a gente era maluco”, recorda. “Mas o que defendíamos era simples: correr riscos é um direito humano, não um privilégio de quem enxerga”. Essa experiência prática, acumulada desde os anos 1990, ganhou sustentação teórica em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação Física (FEF), da Unicamp. O trabalho articula vivências de campo com conceitos da sociologia do risco e da pedagogia do esporte, oferecendo uma sistematização sobre como tornar os esportes de aventura acessíveis a pessoas com deficiência visual.

Antes de propor qualquer metodologia, Carvalho apresentou uma reflexão sobre a terminologia mais adequada para nomear as práticas esportivas. Termos como “esportes radicais”, “esportes na natureza” e “atividades físicas de aventura na natureza” convivem, mas carregam sentidos distintos.

A expressão “radical”, segundo o educador, está associada à exclusividade, ao perigo extremo e até à morte, reforçando um imaginário de que apenas alguns poucos ousados poderiam participar. Para ele, adotar essa palavra seria incompatível com a proposta de inclusão. “Se quero falar de pedagogia e de acesso, não posso usar um termo que pressupõe exclusão”, afirma. Por isso, ele opta por “esporte de aventura”, denominação que considera mais abrangente e capaz de valorizar tanto a experiência sensorial como o caráter educativo.

O risco, um dos temas da tese, é tratado como parte indissociável da vida, segundo alguns teóricos, dentre eles o sociólogo Ulrich Beck. Carvalho recupera esse debate para mostrar que o risco é constitutivo da experiência humana e, portanto, não pode ser eliminado. O que se pode fazer é aprender a lidar com ele.

Para isso, distingue diferentes níveis. O risco real é aquele em que não há margem para erro: uma falha pode ser fatal, como em um salto de paraquedas sem equipamento de reserva. O risco imaginário preserva a sensação de vertigem e perigo, mas em condições controladas, com apoio técnico e pedagógico. Esse “frio na barriga”, de acordo com Carvalho, é central para o aprendizado: permite experimentar a adrenalina e a superação sem que haja ameaça real à vida.

A imagem mostra a esquerda o  orientador do estudo, de camisa polo, na cor preta, professor Edison Duarte e o autor da tese, Artur José de Carvalho, vestindo uma camisa polo com faixas horizontais nas cores azul, laranja e amarelo
O orientador do estudo, Edison Duarte e o autor da tese, Artur José de Carvalho: pesquisa oferece sustentação teórica à vivência em campo realizada desde a década de 1990
A imagem mostra a esquerda o  orientador do estudo, de camisa polo, na cor preta, professor Edison Duarte e o autor da tese, Artur José de Carvalho, vestindo uma camisa polo com faixas horizontais nas cores azul, laranja e amarelo
O orientador do estudo, Edison Duarte e o autor da tese, Artur José de Carvalho: pesquisa oferece sustentação teórica à vivência em campo realizada desde a década de 1990

“Quando alguém desce uma cachoeira preso a uma corda e guiado por equipamentos de segurança, sente o corpo reagir como se estivesse em risco real, mas está protegido. É essa vivência que torna o aprendizado significativo”, explica.

A pedagogia do esporte é o eixo que dá forma a essa proposta. A tradição pedagógica nesse campo foi marcada por modelos técnicos que valorizavam a repetição de gestos e o rendimento físico. Desde os anos 1990, porém, autores como João Batista Freire, Roberto Paes e Hermes Balbino passaram a questionar essa visão mecanicista, defendendo que o esporte deve ser entendido como fenômeno cultural, social e educativo. Carvalho se apoia nessa vertente para propor um ensino baseado em progressões pedagógicas: do simples ao complexo, do plano horizontal até o vertical, do seguro ao desafiador.

“Eu nunca começo com uma cachoeira de 30 metros. Primeiro trabalho no chão, depois em inclinações menores, até que o aluno esteja pronto para a descida completa”, indica. Essa divisão do desafio em etapas é fundamental para que o praticante desenvolva não apenas técnica, mas compreensão e autonomia.

Com pessoas cegas, Carvalho utiliza orientações sonoras, como apitos e palmas, para guiar deslocamentos, exploração tátil dos equipamentos e do ambiente para que os praticantes possam “ver com as mãos” e até maquetes que reproduzem o relevo de um cânion, permitindo que os alunos compreendam o espaço antes de enfrentá-lo. “Não é apenas descer. É vivenciar o ambiente: sentir a água fria, ouvir os pássaros, perceber o espaço ao redor”, resume.

O impacto dessas práticas, segundo o pesquisador, extrapola o momento da atividade. “Já ouvi de alunos: ‘depois de descer uma cachoeira, atravessar a rua ficou mais fácil’. Isso é autoconfiança, é autonomia.”

O professor e pesquisador do Departamento de Estudos de Atividade Física Adaptada Edison Duarte, orientador da tese e referência na área de atividade física adaptada, reforça a importância da pesquisa. “Nos anos 1990, quando ele [Carvalho] começou a levar pessoas cegas para descer cachoeiras de 80 metros, quase ninguém fazia isso no mundo. Agora, no doutorado, ele deu a sustentação teórica que faltava à prática”, afirma.

Duarte ressalta ainda que o estudo estabelece uma base sólida para investigações futuras. “É um start. Esse modelo pode ser adaptado para diferentes deficiências – intelectual, física, neurológica. Ele deu a base, e cabe a outros pesquisadores expandir.”

Para o orientador, o desafio daqui para frente é traduzir a pesquisa em materiais acessíveis, que cheguem à ponta. “Não basta ficar restrito à academia. É preciso transformar em manuais didáticos, passo a passo, para professores de educação física, instrutores de aventura e associações de cegos”, diz. Ele lembra que a Unicamp foi pioneira na criação de um departamento específico para atividade física adaptada e que pesquisas como a de Carvalho fortalecem ainda mais a formação de profissionais capazes de atuar em contextos inclusivos.

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