
No contrafluxo de uma sociedade atordoada
Tese analisa discursos sobre o cuidado de si presentes em redes sociais
No contrafluxo de uma sociedade atordoada
Tese analisa discursos sobre o cuidado de si presentes em redes sociais

Onde estão as brechas para uma sociedade atordoada pelo excesso de informação, pela pressão constante no trabalho e por toda a cobrança acionada pela lógica capitalista? A publicitária Raquel Duarte Hadler identificou nos discursos que divulgam práticas de vida saudável e de autocuidado um lugar para uma possível ruptura com a sobrecarga do século XXI. Para além de ser um sintoma de uma sociedade atordoada, a proliferação dos discursos sobre o cuidado de si aponta para um contrafluxo, um movimento contra a corrente da aceleração. Ainda assim, é um discurso suscetível a se transformar em produto ou ferramenta para acumulação de capital da imagem, da empregabilidade ou do desempenho.
Hadler desenvolveu sua tese no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) analisando os discursos do cuidado de si que circulam no meio digital, em redes sociais como Facebook, Instagram, TikTok e YouTube. Sua investigação sobre a linguagem levou a reflexões sobre a construção da subjetividade do sujeito contemporâneo e as brechas que nos tiram da automação.
“Comecei a analisar como esse cuidado de si era trabalhado nos discursos que circulam e como ele dialoga com as questões atuais do cansaço, desse atordoamento que a gente vive, observando também uma apropriação desse discurso”, diz. Há tanto o aspecto médico quanto o lado do sujeito que pode sair do automático. “É uma escolha de conduta do sujeito.”
A autora se valeu do conceito de cuidado de si de Michel Foucault. A concepção vai muito além da adoção de um estilo de vida saudável. Representa uma prática, pelo autoconhecimento, de autoformação do sujeito, no que se refere à ética e à própria liberdade. O filósofo francês buscou na Grécia Antiga, nas artes de viver, a raiz para sua teoria. “Em geral, perdemos de vista essa raiz filosófica e pensamos somente em autocuidado para relaxamento. Mas o cuidado de si se relaciona com a maneira como construímos nossa subjetividade”, diz Hadler.


Assujeitamento
A tese discute um tópico clássico da análise do discurso: a questão do sujeito que se constitui pela conformação a uma ideologia. “Que sujeito a sociedade está produzindo?”, questiona o professor Sírio Possenti, orientador da tese. Na Idade Média, aponta, eram filhos de Deus, depois eram sujeitos supostamente cidadãos. “Agora são o quê?”, indaga Possenti. “Alguns acham que estamos produzindo pessoas doentes e cansadas, que usam droga para acordar, para dormir, para ser feliz, para fugir da depressão”. De acordo com o orientador, os discursos do cuidado de si representam “espaços para ser menos doente.”
Mas, por outro lado, a pesquisadora também analisou como a lógica capitalista tem a capacidade de mudar esse efeito. “O cuidado de si corre o risco de perder o potencial ético e virar só um investimento pessoal”, afirma Possenti. De acordo com o filósofo coreano Byung-Chul Han, o sujeito contemporâneo não é mais assujeitado a uma estrutura. “Ele é assujeitado a si mesmo.”
“É o sujeito do desempenho, aquele que se autoexplora voluntariamente, buscando ser melhor, como um empreendedor. Ele mesmo se impõe pressões, gerando cansaço e burnout”, explica Hadler. “Ironicamente, o que poderia ser uma prática de liberdade para resistir ao sistema, o cuidado de si também pode virar mais pressão. É a capacidade que o capitalismo tem de engolir a resistência.”
Formação discursiva
Hadler apresentou exemplos da presença do discurso de práticas de cuidado de si em diferentes ambientes digitais para analisar sua dinâmica discursiva e escolheu nove canais brasileiros do YouTube para aprofundar sua análise. A intenção foi selecionar discursos heterogêneos que estão inseridos em uma mesma formação discursiva. “Esse discurso, que entendo que representa um contrafluxo à lógica sociocultural capitalista, não propõe uma revolução. A ideia é pensar o que se pode fazer para melhorar a vida quando se está imerso em uma sociedade cada vez mais atordoada.”
Ela estudou o youtuber Eduardo Marinho, no canal “Observar e absorver”, onde há abordagens mais filosóficas e reflexões críticas fora do padrão. Também analisou canais mais focados em práticas, como o “Pri Leite Yoga”, que oferece aulas da prática gratuitamente, e o “Pensando ao contrário”, focado em comida saudável, receitas e vida sustentável, que bate de frente com a indústria. Analisou ainda perfis com a visão de profissionais da saúde, como o “Saúde da mente”, do psiquiatra Marco Abud.
Dois canais selecionados misturam bem-estar, autoconhecimento e espiritualidade: “Ser felicidade” e “Cadu Cassau”. Outro grupo abrange canais voltados à organização e à produtividade, como “Thaís Godinho – Vida organizada”. Finalmente, a tese incluiu em seu recorte de análise dois canais que usam o cuidado de si para discutir questões sociais, como “A voz da razão”, que fala sobre o envelhecimento de forma positiva; e o canal da comunicadora e cientista social Nátaly Neri, que liga veganismo e sustentabilidade, com discussões sobre raça, gênero e classe.


Contrafluxo
No geral, diz Hadler, os youtubers sugerem prestarmos atenção em nós mesmos, desacelerarmos e irmos contra a maré, com falas como “respeite-se”, “cuide-se”, “espere um pouco” ou, algumas mais incisivas, como “gente, acorda”. A questão do tempo está muito presente, com recomendações como “respire” ou “tire um tempo para você”.
No recorte do estudo, os canais têm entre 100 mil a 4 milhões de seguidores. “Querendo ou não, tem uma questão mercadológica das plataformas, mas se eles não estivessem ali não seriam ouvidos”, pontua a autora da tese. Ao mesmo tempo, diz ela, nem tudo se mobiliza só por interesse comercial, até porque alguns têm financiamento coletivo.
“Um traço que observei nesse discurso de práticas de cuidado de si é que ele é poroso, vai se misturando a partir de encontros com outros discursos, o que é inevitável no contexto contemporâneo atual. Não é um contrafluxo límpido. Chamo isso de porosidade discursiva”, analisa Hadler.
Na avaliação do professor, esses discursos são “primos distantes” dos discursos de autoajuda, que apresentam fórmulas prontas. Mas, continua Possenti, não são a mesma coisa. No discurso do cuidado de si, a reflexão é que o mundo pode estar ruim, mas há pequenos espaços para melhorar, “está em suas mãos”. O sujeito “deixa” de ser um robô para ter uma certa autonomia. “Isso não significa que ele está fora do sistema”, destaca o professor. “A linguagem oferece uma brecha. Sempre há esse espaço de ‘liberdade’ no sistema.”
Na tese, Hadler vê o sujeito com essa autonomia possível. “Acredito que também temos capacidade de escolher o grau de assujeitamento ao qual vamos nos submeter, ainda que todos nós estejamos inseridos na sociedade, soframos diversos atravessamentos e sejamos assujeitados”, conclui a pesquisadora.