
Memória invisibilizada
Memória invisibilizada

Em 35 anos, apenas quatro processos de tombamento relacionados à cultura afro-brasileira foram reconhecidos pela Prefeitura de Campinas
Campinas, no interior de São Paulo, é a única metrópole brasileira que não é capital de Estado. A cidade é conhecida por seu dinamismo econômico em torno de sua área de influência e também por ser um tecnopolo, reunindo universidades, empresas e centros de pesquisa renomados internacionalmente. Sua história e seu patrimônio cultural têm íntima ligação com a cultura de matriz africana trazida no período da escravidão e desenvolvida nesse novo contexto. A metrópole era um dos principais destinos de pessoas escravizadas em São Paulo, que sustentavam a economia no trabalho forçado nas lavouras de cana-de-açúcar e, posteriormente, nos cultivos de café. Em 1872, o censo registrava que 60,8% da população era negra (entre escravizados e libertos), o que revela o protagonismo da população na construção da cidade.
O patrimônio cultural afro-brasileiro de Campinas, no entanto, foi, em grande medida, invisibilizado, já que concorria com a hegemonia do patrimônio cultural de referência branca e colonial. Uma pesquisa desenvolvida por Érica Soares no programa de pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências (IG) contribuiu para uma restituição da negritude de Campinas ao analisar esse patrimônio a partir de um cruzamento entre os bens materiais tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc), entre 1988 e 2023, e 20 lugares de memória levantados pelo Projeto Campinas Afro – desenvolvido em 2021 numa parceria entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Prefeitura de Campinas. Soares integrou o grupo de consultores do Campinas Afro, que buscou fazer um levantamento bibliográfico sobre esses 20 lugares a partir de informações obtidas por notas técnicas e entrevistas realizadas com as pessoas ligadas direta ou indiretamente a esses espaços.
No recorte temporal de 35 anos analisado na dissertação, Soares identificou 162 processos de tombamento de patrimônios materiais, de acordo com o site do Condepacc. A pesquisadora os separou em 15 classes de patrimônios culturais materiais. “Descobri que, desse total, apenas quatro estavam descritos como processos de patrimônios ligados à memória afro-brasileira. Isso equivale a 2,4% do total”, destaca. Entre os bens reconhecidos estão a Igreja de São Benedito, o antigo Largo São Benedito, a Creche Bento Quirino e o prédio que abrigou o Museu do Negro – hoje não mais em funcionamento. Mesmo nesses casos, a descrição oficial carece de informações que ressaltem a herança afro-brasileira.
O estudo evidencia que muitos dos quilombos urbanos e dos espaços de resistência cultural, como a Fazenda Roseira, o Clube Machadinho e a Casa de Cultura Tainã, permanecem sem tombamento. “Esses quilombos urbanos são espaços onde a população negra se fortalece ainda hoje, onde há manifestações culturais e resistência”, afirma Soares, lembrando da importância de reconhecer esses locais como parte da memória coletiva de Campinas. Segundo o estudo, o apagamento da memória afro-brasileira e a construção de uma narrativa voltada à elite cafeeira são resultantes de processos de embranquecimento da cidade, tanto físico quanto simbólico. Em trecho da dissertação, a autora afirma que Campinas possui uma dívida histórica com a população negra. “A recuperação dessas memórias é uma das formas de talvez, não reparar, mas se aproximar – mesmo que insuficientemente – de uma justiça histórica.”


Maria Tereza Paes, orientadora do estudo, foi precursora nos estudos de geografia, turismo e patrimônio cultural. Desde o início dos anos 2000, seu grupo de estudo investiga temas como patrimônio natural, centros históricos e patrimônio imaterial. A docente viu na ausência e no esquecimento da memória afro-brasileira em Campinas uma oportunidade importante de agregá-los aos estudos sobre patrimônio cultural. Assim, a professora aponta o resgate histórico da negritude em Campinas como principal contribuição nos estudos de Soares. “A contribuição é tanto em revelar essa memória escondida, quanto em informar sobre esse esquecimento, denunciando a invisibilidade”, afirma. Segundo Paes, esse movimento também funciona como ato político, ao evidenciar como o planejamento urbano, voltado às elites brancas de maior renda, empurrou a população negra para as periferias.
A ausência de representatividade de movimentos negros no Condepacc pode ter contribuído para esse cenário. “Falta essa representação no órgão oficial do patrimônio. Acredito que seria um avanço caso houvesse representatividade de pessoas ligadas ao movimento negro dentro do Conselho”, aponta Soares. Paes lembra que “os conselhos são feitos por pessoas, representantes de grupos hegemônicos ou representativos daquele momento histórico. E isso vai mudando. A nossa história no Brasil é muito marcada pela exclusão de inúmeras representações sociais”. Para a docente, a Constituição de 1988 abriu caminho para uma maior inclusão, sobretudo no reconhecimento do patrimônio imaterial, que valoriza as festas populares, os diversos saberes e outras expressões coletivas.