
Projeto reúne vida e obra de primeira brasileira a publicar haicai
Helena Kolody recebeu o título de haicaísta em 1993, junto com o nome Reika, traduzido como ‘perfume de literatura’

perfume poético de Helena Kolody (1912-2004), a primeira mulher a publicar haicais no Brasil, volta a espalhar seu aroma. A filha de imigrantes ucranianos, nascida em Cruz Machado, no Paraná, que durante a maior parte da vida atuou como professora em Curitiba, tem sua obra relançada em papel e no universo virtual. A primeira fragrância é o pequeno e delicado livro Reika, apresentado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano e que foi tema de um encontro realizado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp no início de agosto.
Nos próximos meses virão a público ainda o livro inédito Appassionata e um website (helenakolody.art) que reunirá sua vida e obra. O projeto resulta de uma iniciativa de seu sobrinho-neto e doutor em história, Eduardo Kolody, pesquisador colaborador da Unicamp, com pesquisa no acervo do Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural (Ciddic) da Universidade. Há, ainda, a página oficial da autora no Instagram (@helenakolodyoficial).
Herdeiro de seu legado, Eduardo Kolody conta que a tia-avó, com quem teve muita proximidade, recebeu da comunidade nipo-brasileira em 1993 a outorga de haicaísta e o nome “Reika”, em reconhecimento pela sua obra. O termo, composto de dois ideogramas, pode ser traduzido como “perfume de literatura” ou “aroma da poeta maior”. “[Esse termo] sugere algo como um perfume que vai se espalhando no ar, cujo cheiro é a poesia. Uma essência de poesia”, define.
Reika, publicado originalmente em 1993, foi agora reeditado pelo Laboratório Gráfico Arte & Letra, com tiragem limitada. O livro, uma produção artesanal, conta com encadernação em estilo japonês e ilustrações de Guilherme Petreca. “A capa é revestida de tecido na mesma cor azul da vestimenta cerimonial que Helena usou ao receber a outorga”, conta Kolody, que lida com o acervo de sua tia-avó desde 2018. “Gosto da coincidência de que suas iniciais sejam H.K. Além de haicais, o livro conta ainda com tancas, que têm a mesma estrutura do haicai, mas com dois versos a mais, com sete sílabas”, explica.
O professor do Departamento de Teoria Literária do IEL Marcos Lopes destaca a importância do encontro sobre a autora. “No IEL, queremos dar acesso aos mais diversos autores, cultivar a abertura de obras que têm algo a dizer à nossa sensibilidade. Helena Kolody era uma poeta excepcional”, define.


Pioneira
A autora publicou seu primeiro poema, “A Lágrima”, em 1928, na revista O Garoto. Sempre gostou de poesia e citava como uma de suas influências Taras Shevchenko (1814-1861), considerado o fundador da literatura ucraniana moderna e que sua mãe lia para ela ainda criança.
Em 1941, influenciada pelo campineiro Guilherme de Almeida (1890-1969) — considerado o principal divulgador no Brasil daquela forma concisa de fazer poesia vinda do outro lado do mundo —, publicou seu primeiro livro, Paisagem Interior, com 45 poemas, entre os quais três haicais. São eles:

O haicai, minúsculo poema de apenas três versos, que somam 17 sílabas, não tem título em sua forma original, no Japão. O haiku, em ideograma, é grafado em uma única coluna vertical. Mas, no Brasil, os poemas com três linhas — a primeira e a terceira com cinco sílabas e a segunda linha com sete — ganharam, sim, um título para, de certa forma, “preparar o leitor”.
Em 1949, a paulista de Paranapiacaba Fanny Luíza Dupré (1911-1996) se tornou a primeira brasileira a publicar um livro exclusivamente de haicais no Brasil, intitulado Pétalas ao Vento. Kolody e Dupré eram amigas que se relacionavam por meio de cartas e trocavam indicações de leitura. Quatro anos antes, Kolody tinha lançado seu segundo livro, Música Submersa, com um de seus haicais mais famosos, “Pereira em Flor”:

Em uma entrevista, a autora falou sobre de onde veio a inspiração para compor esse haicai: “Uma noite, ao sair da casa de uma amiga, dei com aquela pereira completamente florescida, banhada pela luz da lua cheia. A beleza do quadro foi um impacto na minha sensibilidade. Fiz o poema bem mais tarde. Associei a pereira com uma noiva: a noiva toda vestida de branco, sonhando, com a pereira ao luar”.
Para o herdeiro, sua tia-avó nem sempre seguia o formato tradicional do haicai. “Acredito que ela desenvolveu sua própria forma poética. Vejo em sua obra uma poesia contemplativa, na qual é fácil separar o dia da noite.” Segundo o historiador, Helena Kolody foi, com o tempo, ficando mais concisa. “Quando menos espero, e nas ocasiões mais imprevistas, começo a sonhar palavras”, disse a autora, que encontrava sua motivação ao rascunhar ideias depois transformadas em poemas. “Helena tinha o hábito de escrever muito. Comentava os livros que lia e guardava seus escritos. Ainda hoje, mexendo em seu acervo, encontro textos que permaneceram inéditos”, revela.
“Antigamente, eu me derramava em palavras. Um dia, o doutor Andrade Muricy, um paranaense que era crítico de arte no Rio de Janeiro, aconselhou-me: ‘Você vai muito melhor no poema curto. Você quer encompridar e, às vezes, você dilui o poema ou se repete. Você tem talento para a síntese’. Daí em diante, comecei a cortar os excedentes, deixando só o sumo, o essencial”, contou a autora em um dos cadernos presentes no acervo.
Carlos Drummond de Andrade, que acompanhou sua trajetória, costumava escrever-lhe cartas. Em 1980, a elogiou: “Você domina a arte de exprimir o máximo no mínimo, e com que meditativa sensibilidade!”. Algo parecido aconteceu com Cecília Meireles, com quem se correspondeu ao longo de vários anos. Algumas dessas cartas, aliás, podem ser conferidas no museu virtual do website dedicado à poetisa.

Virtudes da flor
Além de Kolody, apenas outra brasileira conquistou a outorga de haicaísta: Alice Ruiz, viúva de Paulo Leminski (1944-1989), homenageado nesta edição da Flip. Ruiz, que recebeu o nome haicaísta de “Yuuka”, explica que o Ka de Reika e de Yuuka significa flor. Os prefixos Rei e Yuu são adjetivos, virtudes específicas da flor, que apontam para formas de grandeza de quem pratica a poesia mínima. “Helena e Paulo eram vizinhos em Curitiba”, conta Eduardo Kolody. “Sem dúvida, a proximidade entre eles foi importante em sua produção literária e afetiva. Helena nunca se casou nem teve filhos e Leminski a chamava de mãe.”
Em um programa de entrevistas de 1986, no qual Leminski e Ruiz eram os entrevistadores, a autora lembrou seu caminho. “Os literatos e os críticos simplesmente ignoraram essa poesia que ninguém, ainda, estava fazendo. No entanto meus alunos, alunas principalmente, decerto porque eram muito jovens, e os jovens adoram novidades, gostaram muito.”
“Só voltei ao haicai quando Leminski, vizinho de apartamento, descobriu-me”, dizia a autora. Morando no Edifício São Bernardo, em Curitiba, na década de 1960, Kolody já havia publicado dez livros e Leminski tinha 20 anos. Ambos eram professores, filhos de imigrantes do Leste Europeu (Leminski tinha ascendência polonesa) e apaixonados pela cultura oriental. “Na verdade, ela nunca parou de escrever haicais. Há inclusive um haicai com o título ‘Argila’, no livro Vida Breve, de 1964, anterior ao primeiro encontro com Leminski. Acredito que foi ela quem mostrou haicais ao Leminski”, completa o historiador.
Em julho de 1985, Leminski, em uma crônica publicada nos jornais Gazeta do Povo e Folha de S.Paulo, intitulada “Santa Helena Kolody”, celebrou o lançamento de Sempre Palavra. Aos 73 anos, era a primeira vez que Kolody publicava uma obra sua por meio de uma editora, a Criar, de Curitiba, depois de 11 livros lançados por conta própria. “A padroeira da poesia em Curitiba acaba de fazer mais um milagre”, escreveu. “Chama-se Sempre Palavra, tem apenas 50 páginas e inclui uns 40 pequenos poemas. Mas tem luz bastante para iluminar esta cidade por todo um ano […] Algo na poesia e na vida, no produto e no processo, de Helena, me lembram o gaúcho Mario Quintana, a mesma pureza, a mesma entrega, a mesma singeleza, a mesma santidade. Mas Helena é mais enxuta, mais rápida, mais haicai que o mestre de Porto Alegre: Helena chega ao gol com menos toques na bola. Periférica como Quintana, Helena passou esses anos todos meio intocada pelas novidades que fervilharam no eixo Rio-São Paulo, alquimista mergulhando sozinha até a essência do seu fazer lírico, até o momento em que, como diz ela, ‘o carbono acorda diamante’.”
Kolody seguiu recebendo homenagens, apesar de pouco conhecida fora do eixo Rio-São Paulo. Em 1992, o cineasta paranaense Sylvio Back apresentou o curta-metragem A Babel de Luz, em homenagem aos 80 anos da autora, em um trabalho premiado como melhor curta e melhor montagem na 25ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Eleita para a Academia Paranaense de Letras aos 80 anos e a segunda mulher admitida naquele fechado círculo masculino, Kolody recebeu, em 2003, o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), meses antes de sua morte, em 2004.
Além dos haicais, a autora manteve uma vasta produção de poemas. O sobrinho-neto revela que a autora sofreu uma grande desilusão amorosa, que a marcou para sempre e que, por isso, jamais se casou. O amor nunca realizado, obviamente, rendeu muitos versos. Ela dedicou pelo menos 60 poemas ao seu fracasso no amor. E, na coletânea Poemas do Amor Impossível, de 2002, quando comemorou seus 90 anos, publicou:

Um acontecimento marcou sua vida: uma jovem, planejando o suicídio, abriu o livro que a autora havia lhe dado, leu o poema intitulado “Prece” e desistiu de buscar a morte. Depois, o poema recebeu duas versões musicais e passou a ser tratado como uma oração ao receber o imprimatur da Igreja Católica, em 1966, uma distinção que permite que ele seja impresso e lido como uma oração, distinção essa concedida pelo arcebispo de Curitiba na época, dom Manuel da Silveira d’Elboux. A autora também ganhou um caderno com a tradução de “Prece” para mais de 20 idiomas.

Do Oriente para o Ocidente
No começo do século 20, a cultura vinda do Oriente tornou-se febre na Europa. Na França, Paul-Louis Couchoud (1879-1959), nome-chave do orientalismo, foi o responsável pela difusão do haicai, depois de uma visita ao Japão que durou de setembro de 1903 a maio de 1904, quando tomou contato com a literatura daquele país. Ao retornar, produziu seu primeiro conjunto de poemas mínimos: 72 tercetos sem métrica nem rima, que buscavam reproduzir o espírito daquela “novidade” japonesa.
O haicai viralizou com o apoio de Ezra Pound (1885-1972) e passou a ser uma referência também para a poesia moderna de língua inglesa. A partir dos anos de 1950, quando a contracultura buscou, no Oriente, alternativas de religiosidade, expressão artística e estilo de vida, os poemas curtos, ao mesmo tempo modernos e marginais, passaram a fazer parte daquele movimento.
No Brasil, Almeida foi um de seus principais divulgadores. No movimento concretista, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos assimilaram o haicai como referência. Mais tarde, Leminski, Ruiz e Millôr Fernandes trouxeram novos ares ao haicai, algumas vezes com humor.
Em 1990, a Editora da Unicamp lançou Haikai: Antologia e História, de autoria do professor, escritor e crítico literário Paulo Franchetti, em parceria com a professora de linguística Elza Taeko Doi, ambos do IEL, a primeira exposição sistemática sobre a poética do haicai em língua portuguesa.