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Uma vendedora de rua está sob uma cobertura, usando avental rosa e touca, enquanto assa espigas de milho em uma grelha sobre carvão. As espigas estão douradas e algumas bem tostadas. Ao lado, há uma mesa com toalha colorida, cheia de itens como garrafa de água, saco de carvão e recipientes. Outra pessoa com camisa vermelha e touca está por perto. Ao fundo, vê-se uma caminhonete branca estacionada e prédios com vegetação. O chão está molhado, sugerindo que choveu recentemente.
O Maranhão é um dos Estados brasileiros com os maiores índices de fome e risco de fome do país

Periferia luta para se adaptar à precariedade alimentar

Segundo tese, a fome é uma violência resultante do processo de urbanização e das políticas territoriais

Na foto, uma vendedora de rua está sob uma cobertura, usando avental rosa e touca, enquanto assa espigas de milho em uma grelha sobre carvão. As espigas estão douradas e algumas bem tostadas. Ao lado, há uma mesa com toalha colorida, cheia de itens como garrafa de água, saco de carvão e recipientes. Outra pessoa com camisa vermelha e touca está por perto. Ao fundo, vê-se uma caminhonete branca estacionada e prédios com vegetação. O chão está molhado, sugerindo que choveu recentemente.
O Maranhão é um dos Estados brasileiros com os maiores índices de fome e risco de fome do país

Em um país que figura entre os maiores produtores de alimentos do mundo, a fome pode parecer um paradoxo aos olhos menos atentos às engrenagens que movem determinadas sociedades. A partir dessa suposta contradição, uma tese de doutorado defendida recentemente no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp mergulha na complexa relação entre a fome, a urbanização e a desigualdade socioespacial e racial no Brasil. A pesquisa de Livia Cangiano Antipon utiliza a cidade de São Luís (MA) como estudo de caso, dada a posição histórica do Maranhão entre os Estados com os maiores índices de fome e risco de fome do país. O trabalho saiu vencedor do Prêmio Tese Destaque na área de Ciências Humanas e Artes de 2025 da Universidade.

O interesse da pesquisadora pelo tema tem raízes na sua infância. “Via crianças pegando restos de comida nas barracas do Ceasa [Centrais de Abastecimento], em São Paulo. Essas imagens marcaram minha subjetividade e a forma como eu enxergava as coisas”, lembra. A questão ganhou forma acadêmica em 2009, durante a graduação, após procurar o pesquisador e professor do IG Marcio Cataia. Desse encontro nasceu uma relação orientador-orientadora que se estendeu por 15 anos, abrangendo iniciação científica, mestrado e doutorado.

A fome como objeto de estudo atravessa também a trajetória de Cataia, que lembrou de sua pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP), quando sua orientadora à época o apresentou a Josué de Castro, referência no assunto. “[Para Castro], a fome não se restringe a uma mera divisão territorial de abundância e escassez. Ele a via, inclusive, como uma ‘arma de guerra’, uma realidade tristemente visível em conflitos contemporâneos”, diz o professor.

Na pesquisa, Antipon aplica a teoria dos dois circuitos da economia urbana, formulada por Milton Santos. Segundo essa teoria, há um circuito superior, dominado pelo grande capital e marcado pelo uso de tecnologias de ponta, e um circuito inferior, formado por atividades de menor escala e tecnologias mais simples, voltadas à sobrevivência.

O estudo mostra que, apesar da precariedade, o circuito inferior também oferece um espaço de inovação e resistência. “O que encontrei foi um sistema vivo, que se adapta todos os dias. Vi cadernetas com fiados de meses, vizinhos que compravam juntos para aproveitar promoções, gente que fracionava o óleo de cozinha para vender em copos plásticos e caber no bolso do cliente, comerciantes que acompanhavam promoções online para repassar descontos e cozinhas comunitárias que organizavam compras coletivas. Há criatividade e redes de solidariedade, mas isso não substitui as políticas públicas”, afirma.

Cataia complementa: “O problema é que essas estratégias dependem de crédito e são sensíveis a qualquer oscilação de preço ou queda de renda. A estrutura que produz a fome continua lá”.

Na foto, um homem, com cabelo grisalho, barba e óculos, veste blazer preto e camisa escura. Ele está sentado à mesa, gesticulando com a mão direita enquanto a esquerda repousa sobre a superfície. Parece estar falando ou explicando algo, talvez em uma aula ou reunião. Ao fundo, há uma lousa branca, reforçando o ambiente de sala de aula ou espaço de discussão.
O orientador da tese, Marcio Cataia: medidas populares não eliminam a estrutura que produz a fome
Na foto, um homem, com cabelo grisalho, barba e óculos, veste blazer preto e camisa escura. Ele está sentado à mesa, gesticulando com a mão direita enquanto a esquerda repousa sobre a superfície. Parece estar falando ou explicando algo, talvez em uma aula ou reunião. Ao fundo, há uma lousa branca, reforçando o ambiente de sala de aula ou espaço de discussão.
O orientador da tese, Marcio Cataia: medidas populares não eliminam a estrutura que produz a fome

Da história ao trabalho de campo

A primeira parte da tese acompanha a formação histórica e urbana de São Luís, relacionando essa trajetória à presença das desigualdades alimentares. “Percebi que não havia estudos que conectassem a história urbana de São Luís à questão da fome. Essa lacuna precisava ser preenchida”, explica Antipon.

A autora explora desde a diferença entre a situação alimentar de negros e mulheres na formação inicial da cidade, passando pela primeira expansão urbana e o surgimento de redes de comercialização de alimentos, até a fragmentação urbana com a expulsão de populações e a fome.

A pesquisa também revela que as transformações urbanas não apenas reconfiguram a paisagem, mas impactam diretamente as relações sociais e econômicas, gerando um sistema alimentar desigual. Isso promove uma luta pela sobrevivência nas periferias, que se revela como uma forma potente de resistência, algo que se pode ver nos movimentos comunitários, nas associações e nas “políticas da vida cotidiana” adotadas por indivíduos e coletivos.

Antipon analisa a fome como uma forma de violência resultante do processo de urbanização e das políticas territoriais. A pesquisadora, ainda, desafia a perspectiva colorblind (palavra inglesa usada para se referir ao daltonismo, mas que literalmente significa “cego em relação às cores”) — que negligencia a dimensão racial nas interações e nas políticas — ao revelar como a questão racial ocupa um lugar central na dinâmica de reprodução do capitalismo e da fome, especialmente entre as mulheres e as populações pretas e pardas da periferia.

A segunda parte do estudo baseou-se em trabalhos de campo, envolvendo observações de primeira mão e entrevistas realizadas em diferentes pontos da capital maranhense. Antipon analisa a “economia política da cidade” — conjunto de práticas, relações e estruturas que definem quem come, o que come e como essa pessoa tem acesso ao alimento — em áreas de comércio popular de alimentos, feiras, mercados, pequenas mercearias e bancas de rua, estabelecimentos que formam o chamado circuito inferior.

Entre os relatos mais marcantes, a pesquisadora destaca o encontro com uma mulher negra com algo entre 50 e 60 anos de idade e que via na venda de comida uma forma de conquistar liberdade pessoal. Essa mulher ainda falou abertamente sobre sua realidade alimentícia, sem disfarces. “Ela me explicava e me ensinava profundamente o que é o sentido de liberdade, o que é a produção de uma liberdade em um lugar para si, enquanto mulher negra, enquanto sujeito. Ao final da entrevista, ofereci um prato de comida, como fiz com todos os entrevistados, e aí ela contou que só tinha arroz para comer em casa, embora tivesse passado o dia vendendo comida. É a produção de uma economia resultante da fome”, conclui.

Na foto, uma pessoa está em pé, dentro de um ambiente que parece ser um escritório ou sala acadêmica. Ela gesticula com as mãos, como se estivesse explicando algo. Atrás dela, há uma parede com objeto. À direita, uma estante de madeira cheia de livros.
A autora do estudo, Livia Antipon: criatividade e redes de solidariedade não substituem políticas públicas
Na foto, uma pessoa está em pé, dentro de um ambiente que parece ser um escritório ou sala acadêmica. Ela gesticula com as mãos, como se estivesse explicando algo. Atrás dela, há uma parede com objeto. À direita, uma estante de madeira cheia de livros.
A autora do estudo, Livia Antipon: criatividade e redes de solidariedade não substituem políticas públicas

Políticas públicas:
ontem, hoje e amanhã

A partir dos achados da pesquisa, Antipon ressalta a importância das políticas públicas no enfrentamento da fome. “No Maranhão, a ampliação do número de restaurantes populares, de 8 para 169 unidades, fez diferença. Ainda há um número alto de pessoas com fome, mas já não estamos falando de mais da metade da população”, observa.

Cataia vê a tese como um instrumento fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas no Brasil, relembrando o programa Fome Zero, nascido na Unicamp, que conseguiu tirar o país do mapa da fome em 2014. Tanto o orientador como a orientanda defendem que programas do tipo do Bolsa Família, do Programa de Aquisição de Alimentos e do Programa Nacional de Alimentação Escolar sejam fortalecidos e adaptados às especificidades locais. “A política pública precisa entender o território. Fazer a mesma coisa em lugares diferentes não dá o mesmo resultado.”

O mérito central da tese, segundo o professor, está em “combater a invisibilidade da fome e da economia popular, que muitas vezes é chamada de informal e é subestimada”. Ao revelar quem são, onde estão e como se organizam essas pessoas, o trabalho oferece subsídios para a adoção de políticas mais eficazes. “Colocar o tema sobre a mesa já é um passo importante. Saber que já fizemos políticas que funcionaram e que podemos fazê-las de novo é fundamental”, afirma.

Para a pesquisadora, o trabalho contribui para o “movimento de mudança já existente” na forma de pensar as questões raciais no Brasil. Antipon defende a produção de novos estudos que levem em consideração a questão racial, sobretudo nas ciências humanas, e que reconheçam o racismo em situações cotidianas, como as relacionadas à alimentação.

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