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Ginástica herda práticas do racismo estrutural

Em pesquisa, atletas de alto rendimento pretos e pardos relataram vivências discriminatórias no contexto esportivo

Uma pessoa está em pé na areia da praia, perto do mar, fazendo uma apresentação com uma fita vermelha longa. Ela veste um macacão curto laranja claro e está em movimento, com a fita formando curvas no ar. O céu está azul com algumas nuvens, e o mar tem ondas suaves ao fundo. A cena transmite leveza e liberdade.

Ginástica herda práticas do racismo estrutural

Em pesquisa, atletas de alto rendimento pretos e pardos relataram vivências discriminatórias no contexto esportivo

A pesquisadora Franciny dos Santos Dias: autora ouviu relatos de ex-atletas de quatro modalidades de ginástica
Uma pessoa está em pé na areia da praia, perto do mar, fazendo uma apresentação com uma fita vermelha longa. Ela veste um macacão curto laranja claro e está em movimento, com a fita formando curvas no ar. O céu está azul com algumas nuvens, e o mar tem ondas suaves ao fundo. A cena transmite leveza e liberdade.
A pesquisadora Franciny dos Santos Dias: autora ouviu relatos de ex-atletas de quatro modalidades de ginástica

Discriminação, imposição da estética eurocêntrica, “brincadeiras” ofensivas — o chamado racismo recreativo — e casos de abuso moral, verbal e até físico. O rol de violências a que a população negra do país é submetida diariamente também se fez presente na trajetória esportiva de ginastas brasileiros autodeclarados pretos ou pardos, entre homens e mulheres, e que se tornaram protagonistas em suas modalidades entre 1990 e 2020. Os relatos, reunidos em uma tese de doutorado defendida na Unicamp, mostram a recorrência, no âmbito da ginástica de alto rendimento, de práticas herdadas do racismo estrutural. Combatê-lo exige medidas que contemplem desde a formação de treinadores, árbitros e dirigentes até a organização do esporte.

Coube à ex-atleta negra Franciny dos Santos Dias chamar atenção para uma realidade a respeito da qual os ginastas em atividade evitam falar abertamente. Natural de São Mateus, no Espírito Santo, a hoje doutora pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp começou a praticar ginástica rítmica aos 12 anos de idade, em um projeto social de sua cidade. Apesar de ter se destacado na região como a primeira mateense a conquistar uma medalha em um torneio estadual, o início tardio dos treinamentos a impediu de ir mais longe na carreira. “Chorei aos 16 anos quando percebi que estava velha para a ginástica”, conta.

Na foto, uma mulher está em pé ao ar livre, com um fundo cheio de plantas verdes e folhagens altas. Ela tem cabelo ondulado na altura dos ombros e veste uma blusa escura com um lenço colorido no pescoço — o lenço tem tons de azul, vermelho e roxo com desenhos geométricos. Usa brincos pequenos e pendentes. A luz do dia ilumina suavemente a cena, criando um clima tranquilo e natural.
A orientadora de pesquisa, Eliana de Toledo: docente já havia se envolvido com direitos humanos
Na foto, uma mulher está em pé ao ar livre, com um fundo cheio de plantas verdes e folhagens altas. Ela tem cabelo ondulado na altura dos ombros e veste uma blusa escura com um lenço colorido no pescoço — o lenço tem tons de azul, vermelho e roxo com desenhos geométricos. Usa brincos pequenos e pendentes. A luz do dia ilumina suavemente a cena, criando um clima tranquilo e natural.
A orientadora de pesquisa, Eliana de Toledo: docente já havia se envolvido com direitos humanos

Seguindo o conselho de sua mãe, Dias procurou outros caminhos para deixar um legado no mundo da ginástica brasileira. Entrou na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) com o objetivo de tornar-se treinadora, mas acabou descobrindo o gosto pela pesquisa. Depois de concluir a graduação e o mestrado em educação física, decidiu fazer o doutorado na Unicamp sob a orientação de Eliana de Toledo, coordenadora do Laboratório de Pesquisas e Experiências em Ginástica (Lapegi) da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA). A escolha deveu-se, em boa medida, ao envolvimento da docente com iniciativas institucionais e acadêmicas relacionadas à temática dos direitos humanos. “Eu precisava de alguém que tivesse essa abertura”, afirma.

Dias trabalhou com o método da história oral, baseado na realização de entrevistas. A pesquisadora ouviu um total de oito ex-atletas, de quatro modalidades diferentes: um da ginástica acrobática, dois (uma mulher e um homem) da aeróbica, três da artística feminina e duas da rítmica. Todos acumularam títulos em suas carreiras e participaram de grandes competições nacionais e internacionais, incluindo, em alguns casos, os Jogos Pan-Americanos, as Olimpíadas e campeonatos mundiais. Assim como a entrevistadora, a maioria entrou no esporte por meio de projetos sociais e viu a quantidade de colegas pretos e pardos, numerosos entre os novatos, diminuir gradativamente conforme ascendiam até o nível de alto rendimento. Do grupo, apenas duas ex-ginastas iniciaram os seus treinamentos em clubes privados, nos quais os atletas brancos predominam.

Diferentemente de como costuma proceder com os seus orientandos que se dedicam à história oral, Toledo não acompanhou as entrevistas feitas por Dias. “Por mais que a Unicamp tenha um perfil inclusivo e minha presença possa ser empática, eu ainda sou uma mulher branca de olhos claros”, explica a docente, também uma ex-atleta de ginástica rítmica. A preocupação em tornar o ambiente confortável para os entrevistados facilitou o compartilhamento de experiências de abuso e discriminação, demonstrando, segundo a orientadora, a importância de a etnia dos interlocutores ser considerada no planejamento de estudos futuros ancorados na mesma metodologia. “Eles não me trataram como ‘o outro’, mas sim como pertencente”, completa a autora da pesquisa. “Eram recorrentes as referências ao fato de que ‘nós’, negros, sabemos o que é sentir na pele o preconceito.”

Dos oito ex-ginastas que Dias entrevistou, sete disseram ter vivido situações marcadas pelos reflexos do racismo no esporte e pela tolerância a práticas discriminatórias. A própria pesquisadora se surpreendeu com a gravidade dos casos relatados. Entre esses, está o da atleta para quem sugeriram um banho de água sanitária como solução para deixá-la da mesma cor das demais integrantes de sua equipe de ginástica rítmica, modalidade em que há uma pressão maior para o atleta se adequar aos padrões estéticos eurocêntricos. Outro exemplo impactante foi o da ginasta que ouviu a seguinte confissão de sua treinadora: “Gosto de beliscar as pretinhas porque elas não ficam roxas”.

Um grupo de crianças pequenas pratica uma atividade em local fechado, acompanhadas por uma professora. Todos estão em pé sobre colchonetes pretos, segurando fitas coloridas longas, que movimentam no ar. As crianças parecem se divertir enquanto reproduzem os gestos da instrutora.
A pesquisadora ensina ginástica a crianças do Espírito Santo: atletas negros enfrentam “dupla exigência”
Um grupo de crianças pequenas pratica uma atividade em local fechado, acompanhadas por uma professora. Todos estão em pé sobre colchonetes pretos, segurando fitas coloridas longas, que movimentam no ar. As crianças parecem se divertir enquanto reproduzem os gestos da instrutora.
A pesquisadora ensina ginástica a crianças do Espírito Santo: atletas negros enfrentam “dupla exigência”

O conjunto das narrativas comprova que os ginastas negros enfrentam aquilo que Dias chama de “dupla exigência”: o rigor dos treinamentos e a violência do racismo, nas suas mais variadas formas. A pesquisadora salienta o fato de que nem mesmo os poucos atletas pretos e pardos provenientes de classes sociais privilegiadas estão imunes ao preconceito. “Nós só somos aceitos em um ambiente de brancos porque somos campeões”, afirma a pesquisadora, fazendo coro com um dos homens que entrevistou.

O trabalho também permitiu ver que o preconceito racial se manifesta de maneiras distintas nas quatro modalidades analisadas. As barreiras revelam-se menores na ginástica acrobática e na aeróbica, na qual há professores e treinadores negros em atividade desde a década de 1980. “Esses casos mostram que, mesmo com obstáculos, é possível criar espaços mais abertos e menos discriminatórios”, ressalta a autora da pesquisa. Outra constatação importante: o meio da ginástica está se tornando mais inclusivo. Isso ficou claro nos relatos dos entrevistados que disseram ter sido defendidos por treinadoras e gestoras de federações estaduais nas situações em que enfrentaram racismo provocado por outros técnicos, sócios de clubes, árbitros e demais ginastas.

Dias e Toledo esperam que o trabalho contribua para a erradicação do racismo nas diferentes estruturas da ginástica competitiva brasileira, de modo que os atletas negros nos pódios dos principais campeonatos nacionais e internacionais não sejam mais vistos como heróis capazes de superar todo tipo de obstáculo. “Essa é a função da universidade pública”, afirma a docente, enfatizando a necessidade, apontada na tese, de que a formação inicial e continuada de pessoas envolvidas na promoção do desenvolvimento social por meio do esporte conte com cursos, debates e políticas relativos à temática antirracista. “Ninguém está fazendo um favor ao defender a garantia de direitos, muito menos ao lutar para que não haja preconceito racial dentro de um ginásio de ginástica”, completa.

De volta à sua cidade natal, Dias atua hoje como professora de ginástica em diferentes instituições e projetos sociais. “Entendi que o meu propósito não era ser ginasta. O meu legado está se constituindo para algo que transcende a ginástica.”

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