Ginástica herda práticas do racismo estrutural
Em pesquisa, atletas de alto rendimento pretos e pardos relataram vivências discriminatórias no contexto esportivo

Ginástica herda práticas do racismo estrutural
Em pesquisa, atletas de alto rendimento pretos e pardos relataram vivências discriminatórias no contexto esportivo

Discriminação, imposição da estética eurocêntrica, “brincadeiras” ofensivas — o chamado racismo recreativo — e casos de abuso moral, verbal e até físico. O rol de violências a que a população negra do país é submetida diariamente também se fez presente na trajetória esportiva de ginastas brasileiros autodeclarados pretos ou pardos, entre homens e mulheres, e que se tornaram protagonistas em suas modalidades entre 1990 e 2020. Os relatos, reunidos em uma tese de doutorado defendida na Unicamp, mostram a recorrência, no âmbito da ginástica de alto rendimento, de práticas herdadas do racismo estrutural. Combatê-lo exige medidas que contemplem desde a formação de treinadores, árbitros e dirigentes até a organização do esporte.
Coube à ex-atleta negra Franciny dos Santos Dias chamar atenção para uma realidade a respeito da qual os ginastas em atividade evitam falar abertamente. Natural de São Mateus, no Espírito Santo, a hoje doutora pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp começou a praticar ginástica rítmica aos 12 anos de idade, em um projeto social de sua cidade. Apesar de ter se destacado na região como a primeira mateense a conquistar uma medalha em um torneio estadual, o início tardio dos treinamentos a impediu de ir mais longe na carreira. “Chorei aos 16 anos quando percebi que estava velha para a ginástica”, conta.


Seguindo o conselho de sua mãe, Dias procurou outros caminhos para deixar um legado no mundo da ginástica brasileira. Entrou na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) com o objetivo de tornar-se treinadora, mas acabou descobrindo o gosto pela pesquisa. Depois de concluir a graduação e o mestrado em educação física, decidiu fazer o doutorado na Unicamp sob a orientação de Eliana de Toledo, coordenadora do Laboratório de Pesquisas e Experiências em Ginástica (Lapegi) da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA). A escolha deveu-se, em boa medida, ao envolvimento da docente com iniciativas institucionais e acadêmicas relacionadas à temática dos direitos humanos. “Eu precisava de alguém que tivesse essa abertura”, afirma.
Dias trabalhou com o método da história oral, baseado na realização de entrevistas. A pesquisadora ouviu um total de oito ex-atletas, de quatro modalidades diferentes: um da ginástica acrobática, dois (uma mulher e um homem) da aeróbica, três da artística feminina e duas da rítmica. Todos acumularam títulos em suas carreiras e participaram de grandes competições nacionais e internacionais, incluindo, em alguns casos, os Jogos Pan-Americanos, as Olimpíadas e campeonatos mundiais. Assim como a entrevistadora, a maioria entrou no esporte por meio de projetos sociais e viu a quantidade de colegas pretos e pardos, numerosos entre os novatos, diminuir gradativamente conforme ascendiam até o nível de alto rendimento. Do grupo, apenas duas ex-ginastas iniciaram os seus treinamentos em clubes privados, nos quais os atletas brancos predominam.
Diferentemente de como costuma proceder com os seus orientandos que se dedicam à história oral, Toledo não acompanhou as entrevistas feitas por Dias. “Por mais que a Unicamp tenha um perfil inclusivo e minha presença possa ser empática, eu ainda sou uma mulher branca de olhos claros”, explica a docente, também uma ex-atleta de ginástica rítmica. A preocupação em tornar o ambiente confortável para os entrevistados facilitou o compartilhamento de experiências de abuso e discriminação, demonstrando, segundo a orientadora, a importância de a etnia dos interlocutores ser considerada no planejamento de estudos futuros ancorados na mesma metodologia. “Eles não me trataram como ‘o outro’, mas sim como pertencente”, completa a autora da pesquisa. “Eram recorrentes as referências ao fato de que ‘nós’, negros, sabemos o que é sentir na pele o preconceito.”
Dos oito ex-ginastas que Dias entrevistou, sete disseram ter vivido situações marcadas pelos reflexos do racismo no esporte e pela tolerância a práticas discriminatórias. A própria pesquisadora se surpreendeu com a gravidade dos casos relatados. Entre esses, está o da atleta para quem sugeriram um banho de água sanitária como solução para deixá-la da mesma cor das demais integrantes de sua equipe de ginástica rítmica, modalidade em que há uma pressão maior para o atleta se adequar aos padrões estéticos eurocêntricos. Outro exemplo impactante foi o da ginasta que ouviu a seguinte confissão de sua treinadora: “Gosto de beliscar as pretinhas porque elas não ficam roxas”.


O conjunto das narrativas comprova que os ginastas negros enfrentam aquilo que Dias chama de “dupla exigência”: o rigor dos treinamentos e a violência do racismo, nas suas mais variadas formas. A pesquisadora salienta o fato de que nem mesmo os poucos atletas pretos e pardos provenientes de classes sociais privilegiadas estão imunes ao preconceito. “Nós só somos aceitos em um ambiente de brancos porque somos campeões”, afirma a pesquisadora, fazendo coro com um dos homens que entrevistou.
O trabalho também permitiu ver que o preconceito racial se manifesta de maneiras distintas nas quatro modalidades analisadas. As barreiras revelam-se menores na ginástica acrobática e na aeróbica, na qual há professores e treinadores negros em atividade desde a década de 1980. “Esses casos mostram que, mesmo com obstáculos, é possível criar espaços mais abertos e menos discriminatórios”, ressalta a autora da pesquisa. Outra constatação importante: o meio da ginástica está se tornando mais inclusivo. Isso ficou claro nos relatos dos entrevistados que disseram ter sido defendidos por treinadoras e gestoras de federações estaduais nas situações em que enfrentaram racismo provocado por outros técnicos, sócios de clubes, árbitros e demais ginastas.
Dias e Toledo esperam que o trabalho contribua para a erradicação do racismo nas diferentes estruturas da ginástica competitiva brasileira, de modo que os atletas negros nos pódios dos principais campeonatos nacionais e internacionais não sejam mais vistos como heróis capazes de superar todo tipo de obstáculo. “Essa é a função da universidade pública”, afirma a docente, enfatizando a necessidade, apontada na tese, de que a formação inicial e continuada de pessoas envolvidas na promoção do desenvolvimento social por meio do esporte conte com cursos, debates e políticas relativos à temática antirracista. “Ninguém está fazendo um favor ao defender a garantia de direitos, muito menos ao lutar para que não haja preconceito racial dentro de um ginásio de ginástica”, completa.
De volta à sua cidade natal, Dias atua hoje como professora de ginástica em diferentes instituições e projetos sociais. “Entendi que o meu propósito não era ser ginasta. O meu legado está se constituindo para algo que transcende a ginástica.”