
Cartas de amor em tempos de guerra
Correspondência entre Guilherme de Almeida e sua mulher revelam cotidiano da Revolução de 1932

Há vários registros que contam a história da Revolução Constitucionalista, ocorrida entre 9 de julho e 2 de outubro de 1932, quando cerca de 40 mil paulistas pegaram em armas contra o governo provisório de Getúlio Vargas reivindicando a convocação de uma Assembleia Constituinte e a retomada da autonomia dos Estados, perdida com o fim da República Velha. Ficaram conhecidos os cartazes que conclamavam os paulistas a cumprirem seu dever junto ao movimento, as campanhas com palavras de ordem como “Ouro para o bem de São Paulo” — incentivando a doação de jóias para arrecadar recursos —, a cobertura dos grandes jornais da época, como O Estado de S. Paulo, e as manifestações dos grandes intelectuais e artistas paulistas, incluindo o cânone do modernismo de 1922.
O novo livro de Maria Eugenia Boaventura, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, explora um acervo inusitado que ajuda a contar a história do conflito e de um Estado mobilizado pela guerra: as cartas trocadas entre o poeta e jornalista Guilherme de Almeida e sua esposa, Belkiss Barrozo do Amaral, conhecida como “Baby”, entre 25 de julho e 15 de agosto daquele ano. Ele, como membro do chamado “batalhão dos doutores”, que reuniu, no front, vários intelectuais. Ela, em casa, junto à família e aos amigos que prestavam ajuda à revolução. Em um primeiro plano, as 42 cartas descrevem as saudades de um casal apaixonado e separado pelo conflito. Nas entrelinhas, os textos retratam as dificuldades dos combatentes, as articulações em prol do movimento, o papel das mulheres no conflito e o cotidiano do Estado, que parou suas máquinas e foi à guerra. Cartas da Trincheira: Correspondência entre Guilherme de Almeida e sua Musa (1932) foi publicado pela Editora da Unicamp e pela Editora Unifesp.


‘Guilherminho’ e ‘Babyzinha’
A correspondência do casal integra o Fundo Guilherme de Almeida, do Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” (Cedae), do IEL, e é um dos vários acervos de grandes personagens do modernismo paulista, como Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Flávio de Carvalho, mantidos pela Unicamp. “Eles [os artistas e intelectuais modernistas] tinham consciência do papel histórico que desempenhavam”, diz Boaventura, justificando a importância da preservação desses acervos e da realização de estudos a seu respeito. “Quando me deparei com as cartas e com os envelopes, achei algo tão singelo, tão interessante, que pensei que poderia servir como fonte de informação sobre São Paulo naquela época”, afirma.
As cartas mostram-se, de fato, singelas. A maioria contém informações sobre o cotidiano do casal, que se tratava por “Guilherminho” e “Babyzinha”, além de muitos afagos para aplacar as saudades e as preocupações com o conflito. Baby descreve sua rotina na capital paulista, com visitas à sogra e às cunhadas — os irmãos de Guilherme, entre eles Tácito de Almeida, também se alistaram —, o trabalho de arrecadação de fundos junto à Liga de Defesa Paulista e a repercussão da guerra na imprensa. “É como se fosse um diário do que eles faziam, um substituto da presença para o casal”, descreve a professora. Da parte do poeta, chegavam notícias sobre as dificuldades nas trincheiras, como a falta de suprimentos, e a esperança pela vitória. “A minha saudade é inenarrável. E, se não fosse a confiança em Deus, em você, meu amor, e em S. Paulo, talvez eu não resistisse”, escreveu Almeida em 2 de agosto de 1932.
Boaventura chama a atenção para aspectos interessantes das cartas, como os indícios sobre o clima imperante entre os paulistas, no qual se destaca um otimismo inabalável. “Em nenhum momento, eles pensavam que seriam derrotados. Pareciam anestesiados, sempre reiterando que iam ganhar.” O esforço em animar as tropas e a sociedade paulista torna-se evidente no apelo que a presença, na frente de batalha, de nomes então populares trazia ao movimento. “Guilherme talvez tenha sido o poeta mais conhecido do modernismo. Vendia muitos livros. Era popular”, descreve a autora. O poeta menciona esse efeito de “celebridade” nas trincheiras na carta de 29 de julho de 1932, escrita em Cunha, município do leste do Estado: “Os rapazes todos nesta cidade me têm festejado muito. E também os das trincheiras vieram convidar-me para visitá-los”.
O cotidiano de Baby também revela como a sociedade paulistana se adaptou ao cenário de guerra. São constantes as menções sobre o envio de suprimentos — roupas, chocolates, lâminas de barbear e cigarros, principalmente — e sobre a repercussão dos artigos de Almeida publicados nos jornais e lidos em rádios. Lidar com a censura à correspondência por parte dos Correios, um órgão ligado ao governo de Vargas e que lia as mensagens enviadas, também se transformou em uma rotina que, na visão de Baby, “tira todo o it das cartas”, como escreveu em 27 de julho de 1932. A respeito disso, Boaventura observa o cuidado de Almeida em preservar o nome civil da esposa, sempre endereçando suas cartas à Madame Guilherme de Almeida. “Resguardar a imagem da mulher casada era uma convenção da época. Não deixa de ser um paradoxo, pois tratava-se de modernistas”, afirma a professora.


Modernistas ao combate
Integrantes de um establishment paulista que ia além das artes e das letras, os modernistas, quando aderiram ao movimento, agiram conforme se esperava deles. “À exceção de Oswald de Andrade, todos os intelectuais modernistas mais destacados participaram da revolução”, afirma Boaventura. Nesse quesito, Almeida figurou como um personagem fundamental. Além de ser popular, tornou-se o primeiro modernista a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1930. O órgão chegou a ser cobrado pelo poeta para posicionar-se em favor de São Paulo, mas os imortais preferiram manter distância do conflito.
Entretanto o tema da ida dos intelectuais ao front não contou com uma unanimidade. No cenário nacional, autores de expressão, como Mário de Andrade, se equilibraram entre o apoio ao Estado paulista e o não se indispor com o restante do país. “Mário era muito amigo de Carlos Drummond de Andrade, que era assessor do Gustavo Capanema [ministro da Educação e Cultura]. Porém, durante a revolução, eles ficaram afastados”, explica a pesquisadora.