
Algoritmo agiliza entrega por bicicletas
Pesquisa realizada por engenheiro de computação recebeu prêmio de direitos humanos da Unicamp e do Instituto Vladimir Herzog

Quando ingressou no mestrado, o engenheiro de computação Gustavo Gonçalves buscou usar tecnologia de ponta para desenvolver uma ferramenta baseada em valores solidários — e não na lógica capitalista. Como resultado, criou um programa para gerar rotas junto da cooperativa de entregas por bicicleta Senõritas Courier, formada por mulheres cis e pessoas trans e sediada em São Paulo. Seu algoritmo permitiu reduzir o tempo gasto nessa tarefa — que antes levava de um a dois dias para ser concluída e que agora passou a ser realizada em poucos segundos. Fruto de um trabalho coletivo que envolveu a colaboração do Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), sua pesquisa de mestrado venceu o V Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp — Instituto Vladimir Herzog, na categoria Ciências Exatas, Engenharia e Tecnologia.
O estudo, realizado na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec) da Unicamp, começou a tomar corpo depois de Gonçalves passar por uma experiência marcante ao ingressar no mercado de trabalho, uma experiência que o levou a repensar sua carreira e principalmente o uso da ciência e da tecnologia no mundo do trabalho. Em uma indústria de automação, o pesquisador participou de uma reunião com seus contratantes, recebendo parabéns por integrar o time responsável pelo desenvolvimento de uma ferramenta que viabilizou a demissão de funcionários. “Fiquei profundamente mexido com o que era esperado, na sociedade, do meu trabalho como desenvolvedor de código”, recorda-se.
O impacto despertou em Gonçalves o interesse por aprofundar seu conhecimento em automação, período no qual tomou contato com o fenômeno da plataformização do trabalho e o conceito de tecnociência solidária, utilizado para falar do uso da ciência e da tecnologia na criação de uma economia solidária, baseada em valores como sustentabilidade e justiça social e não somente nas leis do mercado e do capital. O pesquisador tomou contato, também, com o conceito de cooperativismo de plataforma, segundo o qual a plataformização do trabalho deve ter por base os valores do trabalho coletivo.


Em seu percurso, Gonçalves conheceu o professor Romis Attux, da Feec, e ingressou no mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia Elétrica. Sua pesquisa, desenvolvida no Laboratório de Processamento de Sinais para Comunicações (DSPCom, na sigla em inglês), teve como orientadores o próprio Attux e Cristiano Cruz, professor do Instituto Mauá de Tecnologia. Para amparar seu trabalho, ele estudou o conceito emergente de plataforma de propriedade dos trabalhadores, criado pelo brasileiro Rafael Grohmann (professor da Universidade de Toronto, Canadá), e a engenharia popular, movimento que surgiu no país e se popularizou a partir dos anos 2000.
Já o convite para participar do desenvolvimento de uma plataforma de entregas voltada à cooperativa Senõritas Courier partiu de Aline Os, presidente do coletivo. Gonçalves ficou encarregado de elaborar um algoritmo para gerar ciclorrotas de entrega, levando em consideração o tempo gasto nos trajetos, uma distribuição mais equitativa do trabalho entre todos, com limites de peso, volume e distância máximos para cada cicloentregadora, e o respeito às particularidades de seus corpos e diferentes estados de ânimo. O agora mestre em engenharia elétrica entendeu que criar as rotas para as integrantes da cooperativa não significava uma simples tarefa burocrática, mas um momento de entender como as pessoas estavam. Trata-se, portanto, de um trabalho também de cuidado. “Há corpos que menstruam, corpos mais idosos, corpos de vários tipos e jeitos — algo que, normalmente, a computação abstrai, de forma que todo o corpo seja um corpo padrão, considerado perfeito”, observa Gonçalves. Na opinião do pesquisador, é difícil levar esse trabalho de cuidado para dentro do computador. “Quando entendemos isso, percebemos que nossa solução deveria auxiliá-las nesse processo, pois nunca poderia substituí-las completamente.”
Uma metodologia bastante utilizada a fim de apresentar soluções para problemas de roteamento de veículos, o algoritmo genético — assim chamado por ter seu funcionamento inspirado no processo evolutivo e na seleção natural — foi escolhido por Gonçalves. De acordo com Attux, já se sabia que a ferramenta funcionava bem ao solucionar problemas combinatórios envolvendo o estabelecimento de rotas. “O fluxo geral da operação do algoritmo genético nos pareceu didático o suficiente para poder explicar mais ou menos como seria a metodologia da solução e até poder trabalhar isso com as integrantes da cooperativa, sem precisar entrar nos detalhes matemáticos de como o problema é formulado. Pensamos que isso poderia ser bom porque daria para tentar uma perspectiva empoderadora, de querer discutir como o algoritmo está funcionando, para que essas pessoas possam se apropriar do algoritmo”, diz o professor da Feec.


O algoritmo criado por Gonçalves auxilia as señoritas a distribuírem o trabalho entre si de maneira mais equitativa, apresentando uma alternativa que possa, também, ser a mais curta. “Na visão capitalista, se posso cobrar o cliente apenas pelo período que é importante para ele, é isso o que as bikers vão receber. Já a Señoritas considera o tanto que elas estão pedalando”, diz o engenheiro de computação. “Entendemos, durante esse processo, que a gente está vivendo um momento no qual a inteligência artificial quer entrar em todos os lugares e substituir toda a ação humana. Se o processo pode ser automatizado, parece que ele deve ser automatizado, e a nossa ideia foi não automatizar por completo o trabalho do cuidado realizado pelas cooperadas, mas, sim, trazer uma ferramenta que auxiliasse nesse trabalho.”
A solução incluiu tratar os dados referentes a pedidos de entrega feitos anteriormente, já categorizados pela Señoritas, e levantar sugestões junto às cooperadas, para fazer os testes com o algoritmo e ajustá-lo. Dessa forma, o pesquisador conseguiu realizar uma personalização da ferramenta. Além do nome de cada cooperada, os dados utilizados levaram em consideração o quanto cada uma conseguia carregar, em peso e volume, além do tipo de bicicleta e das distâncias máximas que se disponibilizavam a percorrer. Segundo Attux, o resultado não se destaca somente do ponto de vista técnico. “Há um preconceito na Universidade quando se fala de trabalho de extensão, e o Gustavo mostra que, metodologicamente, é possível fazer engenharia de ponta, de alto nível, sem precisar seguir as métricas tradicionais do capitalismo e da exploração de pessoas”, afirma.