
Urbanização altera hábitos de onças-pardas
Pesquisa de doutorado investiga os impactos do uso e ocupação do solo no modo de vida desses animais
Embora não haja registros de ataques de onças-pardas (Puma concolor) a seres humanos na Região Metropolitana de Campinas (RMC), qualquer sinal do felino nas proximidades de áreas ocupadas viraliza nas redes sociais. Há flagras em situações as mais diversas: espreitando um galinheiro, nas proximidades de uma agência bancária e até circulando por um hospital — quando não no acostamento de uma estrada, com o animal já sem vida. Estaria a espécie se “urbanizando”?
Analisar como o avanço da urbanização impactou a relação entre a suçuarana — como também é chamada — e a sociedade foi o objetivo de uma pesquisa de doutorado realizada pela geógrafa Adriana Conceição, no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. Sua investigação, que obteve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), buscou identificar como as mudanças no uso e na ocupação da terra nos 20 municípios da RMC impactaram a vida da espécie. Os achados mostram que, entre 2000 e 2024, a onça-parda circulou por todas as cidades da região — o equivalente a um território de 3.791,80 km² —, contabilizando 552 registros.


O trabalho, desenvolvido no grupo de pesquisa Geotecnologias Aplicadas à Gestão do Território (Geoget), do IG, contou com orientação do professor Lindon Matias, que confessa: o mais próximo que os pesquisadores chegaram do animal em liberdade aconteceu quando identificaram pegadas ainda frescas do felino, durante um trabalho de campo nas proximidades da Mata da Meia Lua, localizada nos arredores da Refinaria de Paulínia (Replan).
O mapeamento dos registros e avistamentos ocorreu graças a uma parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que concedeu acesso ao conteúdo captado pelas armadilhas fotográficas da Área de Relevante Interesse Ecológico Mata de Santa Genebra. Além disso, a agora doutora trabalhou com imagens de câmeras de segurança e com equipamentos de monitoramento das rodovias, bem como um questionário on-line para colher os relatos de moradores locais. Este revelou que 78,7% dos residentes tinham ciência da presença da onça-parda na região.
Para a realização das análises em cada cenário, a autora considerou características biológicas e comportamentais da suçuarana, refletindo como a urbanização e a presença de seres humanos podem mudar os hábitos de circulação do felino. O risco de atropelamentos nas estradas e rodovias locais seria um exemplo, diz Conceição. Ao cruzar uma pista na madrugada, os faróis dos carros podem cegar temporariamente a onça-parda, que perde o rumo e acaba atingida pelo veículo, ainda que seja um animal veloz. A situação se tornou ainda mais grave no ano de 2024, quando o recorde de queimadas somou-se a esses fatores, aumentando o número de acidentes com a espécie.
Segundo Conceição, o interesse da geografia por um tema tradicionalmente pesquisado pela biologia e a ecologia ganhou força recentemente e deu origem a um novo campo de estudos — a geografia dos animais. “[O estudo] parte da sociedade, com sua dinâmica do uso e da ocupação da terra, para discutir as mudanças que afetam as inter-relações com a fauna, dando ênfase aos fatores e elementos da sociedade que impactam as espécies animais.” Matias, por outro lado, acredita que a tese estabelece um marco, por acrescentar a dimensão ambiental a uma discussão atual, que envolve questões econômicas, sociais e políticas. “[A tese] vai além, portanto, do que tradicionalmente se faz”.

Distribuição irregular

De 19 casos de avistamento do animal catalogados na primeira década do século, o número saltou para 328 entre 2015 e 2019, caindo para 155 entre 2020 e 2024. Conceição explica que as armadilhas fotográficas, instaladas sobretudo em fragmentos florestais próximos a áreas urbanizadas, responderam pela maioria (384) dos avistamentos. Em toda a área, houve 37 avistamentos presenciais, além de 25 atropelamentos — principalmente em Campinas (5), Valinhos (4) e Jaguariúna (4). “Em relação aos avistamentos relatados no questionário, a maior parte se deu em Campinas [23 registros], seguida de Americana, Cosmópolis, Jaguariúna, Valinhos e Vinhedo, com média de 8 a 10 em cada um desses municípios”, diz.
O trabalho revelou ainda que, apesar de o animal ter circulado por todos os municípios estudados, isso não ocorreu de forma homogênea. As maiores densidades deram-se em Campinas (404), Cosmópolis (43), Americana (15), Paulínia (16) e Jaguariúna (13), com destaque para duas importantes unidades de conservação: a Mata de Santa Genebra, em Campinas, e o Matão de Cosmópolis.
A porção oeste da RMC, com suas extensas áreas agrícolas, figurou como outra área de destaque. A geógrafa notou, ainda, que as mudanças na cultura da cana-de-açúcar — principalmente com a substituição da queima pela mecanização e a plantação de bolsões de reflorestamento no entorno das lavouras —, facilitaram a adaptação do animal às áreas de plantio canavieiro. Nessas áreas, por exemplo, houve um aumento do número de presas das onças-pardas, como pequenos e médios vertebrados.
“Projetos de reflorestamento no entorno das áreas de cultivo tornaram essa região, onde estão cidades como Cosmópolis, Santa Bárbara D’Oeste e Americana, propícia para o Puma concolor”, indica Conceição, explicando que o processo de adaptação do animal ao ambiente da lavoura canavieira contribuiu para os avistamentos.
É possível coexistir?
A resposta de Conceição é: “Sim”. Na realidade, afirma, já há uma coexistência forçada pela pressão da sociedade sobre os espaços remanescentes de vegetação. “Pode-se pensar que uma mancha urbana serviria como um bloqueio à chegada da onça-parda, mas o animal está ali, sim. Entra na cidade, na propriedade rural e transita”, afirma a geógrafa, reforçando, porém, que eventualmente o felino migra para outra área de vegetação, ainda que na mesma região.
A fim de que o habitat da onça-parda seja respeitado e preservado, Conceição sugere a adoção de medidas envolvendo todas as esferas da sociedade. Isso inclui a adoção de políticas públicas e esforços de fiscalização, bem como o investimento na construção de corredores ecológicos e de passagens de fauna — vias subterrâneas e aéreas para que os animais transitem por uma área sem atravessar as rodovias — em mais pontos da RMC. Hoje há apenas dois corredores do tipo em toda a região.
Em relação à sociedade, continua a pesquisadora, tão fundamental quanto o trabalho de educação ambiental é a conscientização da população sobre o risco de conflitos com o animal — evitando, por exemplo, ações retaliatórias contra os felinos no caso de perda de animais de criação na zona rural.
Embora se trate de uma região conhecida por sua forte vocação tecnológica e científica, além de um extenso parque industrial, a RMC terá de aprender a compartilhar cada vez mais o espaço com a suçuarana, defende o professor do IG. “Nós estaremos cada vez mais próximos dos habitats que eram de acesso exclusivo desses animais. Pensar uma forma de convivência sustentável é importante para o futuro da região.”
