
Jogo de celular reabilita afásicos
Tecnologia é resultado de pesquisa desenvolvida por um pesquisador com comprometimento de linguagem

Por meio de jogos, as pessoas podem interagir entre si, comunicar-se e entrar em contato com o mundo. Mesmo em casos em que os jogadores apresentam dificuldades de comunicação, o estímulo para cumprir tarefas e vencer etapas oferece uma experiência valiosa em termos de reabilitação e de socialização. Esse potencial motivou Anderson Alberto Ramos, engenheiro eletricista especializado em engenharia clínica, a desenvolver um jogo de celular voltado a pessoas com afasia, um problema que afeta as linguagens oral e/ou escrita causado por fatores como lesões cerebrais decorrentes de um acidente vascular cerebral (AVC), de tumores cerebrais e de um traumatismo craniano.
Além de oferecer um recurso terapêutico importante, o novo jogo rompeu paradigmas nas pesquisas da área ao colocar os próprios usuários das tecnologias de reabilitação na linha de frente de seu desenvolvimento. Em 2017, o engenheiro sofreu um AVC isquêmico que o deixou com afasia, comprometendo sua capacidade de leitura e de escrita e prejudicando o processo de relacionar as palavras com seus significados. “Sempre gostei de fazer algo que contribuísse com outras pessoas”, afirma Ramos.
Graças a sua experiência como frequentador do Centro de Convivência de Afásicos (CCA) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, em julho de 2025, Ramos defendeu sua dissertação de mestrado em engenharia elétrica, que resultou no jogo Afasia por um Afásico. A pesquisa contou com orientação do professor Antônio Augusto Fasolo Quevedo, membro da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec) que trabalha com engenharia de reabilitação, coorientação da professora Maria Irma Hadler Coudry, do IEL e do CCA, e a colaboração dos estudantes Gabriel Rodrigues, do IEL, e Gustavo Morais, do Instituto de Computação (IC).


Na palma da mão
O jogo desenvolvido por Ramos, uma tecnologia simples em termos de recursos visuais e de programação, possui uma interface inspirada nos gráficos de jogos de 16 bits da Nintendo, como Super Mario e Donkey Kong. “Esses são os [jogos] que eu jogava quando era criança”, lembra. Por meio de gravações de áudio feitas pelo próprio engenheiro, o usuário recebe as instruções e as regras do jogo. Logo no início, o jogador pode escolher entre seis personagens, de diferentes perfis, idades e tipos de comprometimento da fala.
O percurso apresenta dez fases e, em cada uma, o jogador deve responder a questões como: “Onde você pode sentar?”; “Qual esporte é jogado com bola?”; ou “O que ajuda a proteger a cabeça do Sol?”. Cada questão apresenta cinco respostas possíveis indicadas por imagens. Por exemplo, a primeira questão vem acompanhada de imagens de uma cadeira, de um sofá e de um gramado. Por meio dessa dinâmica, os usuários estimulam sua capacidade de relacionar as questões com os diferentes conceitos que podem ser empregados como resposta, melhorando suas habilidades comunicacionais.


Ramos destaca não haver um único caminho a ser percorrido pelos jogadores. Ao contrário, os usuários têm a liberdade de escolher qual fase desejam jogar ou mesmo de trocar de fase antes de completá-la. Outra característica são as diferentes possibilidades de resposta para uma mesma questão, como diferentes lugares para se sentar ou os diferentes objetos que podem proteger a cabeça dos raios solares — entre os quais, um jornal. “Geralmente, o afásico recebe a informação de que existe apenas uma resposta correta nessas situações. Eu quis mostrar que pode haver mais de uma resposta correta.” O uso de recursos visuais também facilita a interação com amigos e familiares, estimulando as habilidades comunicacionais. “O afásico tem dificuldade de falar algumas palavras. Dessa forma, ele pode mostrar [a imagem no celular] para alguém da família e aí a pessoa diz qual é a palavra. É um jeito de ajudar a se comunicar”, diz o engenheiro.
Segundo o orientador da pesquisa, as metodologias empregadas no desenvolvimento de projetos do tipo devem incluir os usuários de tecnologias de reabilitação. Por isso, ao contar com Ramos como idealizador do jogo, a pesquisa representa um avanço importante para a área. “Nós não conseguimos ter o ponto de vista do usuário. Conseguimos entender um pouco, mas algo sempre escapa. As melhores pessoas para apontar aquilo de que os usuários precisam são eles mesmos”, afirma Quevedo. Os pesquisadores pretendem disponibilizar o jogo com código aberto, para que outros desenvolvedores possam aperfeiçoá-lo.


Questão de linguagem
Criado em 1989 a partir de um convênio entre as áreas de linguística do IEL e de neurologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), o CCA propõe uma abordagem diferenciada no caso da afasia. “Nós inserimos os pacientes na linguagem, no seu funcionamento discursivo, nas interações dialógicas”, explica Coudry. Em encontros semanais, dos quais Ramos participa, pessoas com afasia realizam atividades envolvendo estímulos relacionados a diferentes formas de linguagem e põem em prática diferentes estratégias de comunicação.
Segundo a neurolinguística discursiva, que oferece a base teórica para as atividades do grupo, a comunicação dos afásicos deve ser encarada como uma forma de tradução. Os pacientes exploram outras formas de expressar uma palavra ou ideia. “Toda vez em que um afásico utiliza a significação funcional de uma palavra, encontrando formas alternativas de explicar o que quer dizer, ativa outros circuitos neuronais e estimula a plasticidade do cérebro”, diz a coorientadora.
O conhecimento obtido no CCA e os estímulos linguísticos auxiliaram Ramos a desenvolver sua pesquisa — o texto da dissertação mantém as marcas da afasia, mas conta com trechos adicionais incluídos por Coudry na tradução da fala do pesquisador — e a formular as etapas do jogo. “Não se trata de indicar o que é certo ou errado, mas caminhos possíveis para a comunicação. É para isso que o jogo contribui”, avalia a docente.