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Cerveja ganha toque milenar japonês

Cerveja ganha toque milenar japonês

A imagem mostra dois elementos principais.
Na parte maior, em segundo plano, há um grupo de grãos cobertos por uma camada espessa e aveludada de micélio branco, característica do fungo koji (Aspergillus oryzae). Os grãos estão aglomerados, e a textura do fungo cria uma aparência fofa e levemente granulada sobre a superfície. O fundo é de cor vermelha intensa, destacando o contraste com o branco do micélio.

No canto inferior esquerdo, em um círculo sobreposto, aparece uma fotografia separada de grãos crus. Eles são de cevada, exibindo cascas alongadas, com tonalidades que variam entre bege-claro e marrom-escuro. Esses grãos estão limpos e soltos, sem presença de fungo, servindo como comparação com os grãos inoculados que ocupam a imagem principal.
Grãos de cevada com o fungo koji, cultivado há 2 mil anos, e sem o fungo (destaque): ingrediente é a base da fabricação de diversos alimentos japoneses

Bolor oriental acelera o processo de desenvolvimento da bebida e torna seu sabor mais complexo

A imagem mostra dois elementos principais.
Na parte maior, em segundo plano, há um grupo de grãos cobertos por uma camada espessa e aveludada de micélio branco, característica do fungo koji (Aspergillus oryzae). Os grãos estão aglomerados, e a textura do fungo cria uma aparência fofa e levemente granulada sobre a superfície. O fundo é de cor vermelha intensa, destacando o contraste com o branco do micélio.

No canto inferior esquerdo, em um círculo sobreposto, aparece uma fotografia separada de grãos crus. Eles são de cevada, exibindo cascas alongadas, com tonalidades que variam entre bege-claro e marrom-escuro. Esses grãos estão limpos e soltos, sem presença de fungo, servindo como comparação com os grãos inoculados que ocupam a imagem principal.
Grãos de cevada com o fungo koji, cultivado há 2 mil anos, e sem o fungo (destaque): ingrediente é a base da fabricação de diversos alimentos japoneses

Você pode nunca ter ouvido falar em koji, mas certamente já provou algum alimento preparado com esse milenar ingrediente asiático. Base para a fabricação do shoyu, do saquê e do missô, além de outros muitos alimentos fermentados da culinária nipônica, esse fungo, cultivado há mais de 2 mil anos, conseguiu acelerar o processo da produção de uma cerveja, além de acrescentar mais complexidade ao sabor da bebida ocidental. Isso é o que mostrou uma pesquisa de doutorado realizada na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp e que contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Autora do trabalho, a engenheira de alimentos Aline Brito tem se dedicado, desde a iniciação científica, à cerveja. “Acho incrível o que pode ser feito apenas com malte, lúpulo, água e levedura. Uma quantidade enorme de diferentes cervejas: escuras, claras, de trigo, leves, pesadas, mais alcoólicas, para servir no inverno, para servir no verão, sem álcool. Isso sempre foi algo que me fascinou”, afirma.

O interesse em investigar o resultado de adicionar o bolor japonês ao preparo do malte — ingrediente indispensável da cerveja, feito a partir da germinação de diferentes cereais — surgiu durante uma aula sobre shoyu ministrada pelo professor Flavio Luis Schmidt, na pós-graduação da FEA. “Deu um estalo, porque o papel do koji na produção de shoyu acaba sendo um pouco similar ao do malte no caso da cerveja”, diz Brito.

Na avaliação de Schmidt, que orientou o doutorado, as cervejas resultantes da pesquisa já podem ser produzidas em escala. “Não é preciso um investimento muito grande para montar o processo fermentativo, de modo que não é necessário um aporte volumoso. Isso é algo que pode ser convertido em realidade no curto prazo”, afirma.

A imagem mostra uma mulher jovem sorrindo, com cabelo escuro preso em trança lateral, usando blazer verde-oliva, em um ambiente interno com equipamentos e estruturas metálicas ao fundo.
Aline Brito, engenheira de alimentos e autora da tese: cientista se interessou pela produção de cerveja ainda na graduação
A imagem mostra uma mulher jovem sorrindo, com cabelo escuro preso em trança lateral, usando blazer verde-oliva, em um ambiente interno com equipamentos e estruturas metálicas ao fundo.
Aline Brito, engenheira de alimentos e autora da tese: cientista se interessou pela produção de cerveja ainda na graduação

A ideia de uma cerveja com koji já havia circulado no mundo da gastronomia. A expansão do mercado artesanal levou mestres cervejeiros do mundo todo a buscar inspiração em outras bebidas fermentadas e a investir no desenvolvimento de produtos que incorporassem elementos de diferentes tradições de fermentação. Já na academia, há poucas pesquisas dedicadas ao tema, diz Schmidt. Isso contribuiu para o interesse, na pesquisa, da Universidade Estadual de Montana (Estados Unidos), onde há uma intensa produção científica sobre o malte. Esse interesse viabilizou o intercâmbio acadêmico de Brito, com financiamento do Programa Institucional de Internacionalização (Print) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

A pesquisadora usou duas espécies de koji: o Aspergillus oryzae, em geral utilizado na produção de saquê, e o Aspergillus luchuensis, empregado normalmente na fabricação de uma bebida japonesa destilada, chamada sochu ou soju. Enquanto o primeiro tipo de koji gera uma grande quantidade de açúcares, o que costuma resultar em um sabor adocicado, o segundo produz muito ácido cítrico, deixando a bebida com uma acidez acentuada.

Para o fungo ter acesso aos nutrientes presentes no interior dos grãos da cevada, esses passaram por um processo de remoção da casca denominado perolização. Após inocular o koji no cereal, a pesquisadora, para que os bolores produzissem enzimas e desenvolvessem aromas e sabores, realizou uma etapa de fermentação. O principal desafio, recorda-se, deu-se ao controlar o processo de maltação com o koji, modulando tempo e temperatura para chegar ao perfil aromático final — um processo de muitas tentativas e erros.

As cervejas produzidas com os dois kojis apresentaram propriedades tecnológicas e características sensoriais distintas. Segundo Brito, a espécie A. oryzae conferiu à bebida aroma e sabor únicos. No paladar, os provadores identificaram notas frutadas e doces. “Um dulçor que os provadores não conseguiram descrever, que normalmente não é associado à cerveja”, descreve a engenheira de alimentos. Já no produto preparado com o A. luchuensis, além de mais acidez, surgiram notas florais e de nozes e um sabor de sidra, embora não tenha havido o uso de frutas no preparo.

A imagem mostra um homem de óculos, vestindo jaleco branco com o nome “Prof. Dr. Flávio Schmidt” e o logotipo da Unicamp, em um ambiente de laboratório.
O docente Flavio Schmidt, que orientou o estudo: ideia da pesquisa surgiu em uma aula sobre a produção de shoyu
A imagem mostra um homem de óculos, vestindo jaleco branco com o nome “Prof. Dr. Flávio Schmidt” e o logotipo da Unicamp, em um ambiente de laboratório.
O docente Flavio Schmidt, que orientou o estudo: ideia da pesquisa surgiu em uma aula sobre a produção de shoyu

Nos dois casos, as bebidas demonstraram apelo mercadológico, afirma o professor. Não apenas por resultarem em sabores, aromas e colorações palatáveis, mas por conseguirem uma maltação mais rápida, o que pode significar economia de tempo nas fábricas. Enquanto a produção convencional de malte especial (usado para fazer cervejas artesanais) leva de cinco a sete dias, com os kojis, Brito conseguiu chegar ao ponto desejado em aproximadamente quatro dias. “Esses vários fungos que chamamos de koji produzem uma grande quantidade de enzimas, que quebram moléculas grandes em menores. Diversos processos na indústria alimentícia são baseados na produção de enzimas e quebra de compostos. E o koji faz isso muito rapidamente.”

Para o professor, um dos aspectos mais significativos do trabalho deu-se ao combinar ingredientes oriundos de culturas diferentes e distantes — inclusive no tempo. “Estamos colocando um olhar bem ocidental sobre uma matéria-prima que não foi concebida para essa finalidade. O bacana é justamente trazer todo um desenvolvimento cultural e aplicar de forma diferente.” Embora com mais de 9 mil anos, lembra Schmidt, a cerveja é um alimento vivo, isto é, não para de evoluir. A bebida consumida hoje possui pouco mais de dois séculos, esclarece o professor, lembrando que, em um mercado ávido por novidades, cervejas com características inesperadas podem sobressair.

Ao longo da pesquisa, realizou-se uma série de outras análises, por meio das quais a agora doutora em engenharia de alimentos buscou caracterizar os perfis químicos, sensoriais e tecnológicos dos maltes e das cervejas produzidas com o koji, para compará-los com os de um processo tradicional. Brito fez, ainda, uma análise metabolômica, na qual mapeou as moléculas das substâncias (álcoois, carboidratos, proteínas, entre outras) resultantes da produção dos maltes e das bebidas. Para seu orientador, o trabalho serve de manual de referência para futuros pesquisadores que desejem trabalhar com o bolor japonês, associando-o, inclusive, a outras fontes de amido — como a mandioca.

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