Exame identifica ‘impressão digital’ da obesidade
Análise de metabólitos presentes na urina de pessoas obesas permite detectar os mecanismos por trás da condição de cada paciente


Exame identifica ‘impressão digital’ da obesidade
Análise de metabólitos presentes na urina de pessoas obesas permite detectar os mecanismos por trás da condição de cada paciente
“Imagine que, daqui a 20 ou 30 anos, um paciente possa chegar ao pronto-socorro e, a partir de um exame de urina, o médico consiga identificar seu padrão de obesidade?”, propõe a endocrinologista Aline Gurgel, professora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa). Esse o ponto principal abordado em um estudo que evidencia a relação entre o excesso de gordura visceral — encontrada na cavidade abdominal, entre os órgãos (um acúmulo associado a um maior risco cardiovascular) — e o aumento de determinados metabólitos, os produtos das reações metabólicas, presentes na urina. As alterações nos índices de concentração de substâncias que indicam inflamação, resistência à insulina e mudanças metabólicas — todas essas condições ligadas à obesidade —, revelam, ainda, o potencial de um exame não invasivo para se chegar a um diagnóstico mais preciso sobre cada caso e, consequentemente, a um tratamento mais adequado.
Divulgado no periódico científico Metabolites, o estudo integrou a pesquisa realizada por Gurgel no âmbito do programa Doutorado Interinstitucional (Dinter), uma iniciativa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para viabilizar o aprimoramento de docentes de universidades que não dispõem de programas de pós-graduação. Primeira professora da Ufersa a titular-se doutora pela Unicamp por meio do projeto, a pesquisadora contou com a orientação da endocrinologista Denise Zantut, docente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade e coordenadora de seu programa de pós-graduação em clínica médica.
A necessidade de aperfeiçoar o diagnóstico sobre a obesidade inspirou a pesquisa da agora doutora em endocrinologia, que destaca a importância de fazer uma melhor triagem em relação a cada paciente para que se possa definir qual a conduta mais assertiva. “Está claro que o futuro do combate à obesidade é o tratamento direcionado, personalizado. Cada pessoa tem um metabolismo, um perfil genético e um padrão alimentar específicos”, argumenta. “Quantas vezes o médico prescreve uma medicação, e o tratamento não surte efeito com determinado paciente? Em muitos casos, o problema não é falta de adesão ao tratamento. Simplesmente a pessoa não possui, metabolicamente, o perfil necessário para responder a esse tratamento.”


A metabolômica, ciência que estuda os metabólitos, serviu de base teórica para o trabalho da pesquisadora. Embora no Brasil ainda sejam raros os estudos na área focados em pessoas obesas, no cenário internacional essa abordagem integra trabalhos promissores sobre a obesidade, tendo contribuído, por exemplo, para o desenvolvimento da mais nova geração de medicamentos antiobesidade. Segundo Gurgel, a vantagem da abordagem está na possibilidade de investigar os mecanismos subjacentes à condição. Em seu estudo, a médica utilizou amostras de urina para realizar análises metabolômicas por ressonância magnética nuclear, técnica que permite traçar mapas bastante detalhados do que está acontecendo no metabolismo. “Isso é como uma impressão digital”, afirma.
A pesquisa, fruto de um convênio firmado entre a Unicamp, a Ufersa e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contou com a participação do professor Alviclér Magalhães, coordenador do Laboratório Multiusuário de Ressonância Magnética Nuclear e de Líquidos da instituição fluminense. “O Dinter cumpre um papel importante no aprimoramento de docentes, principalmente daqueles vinculados a universidades mais jovens, onde ainda não há um programa de pós-graduação estabelecido. Dessa forma, esses professores podem desenvolver suas pesquisas de doutoramento e receber uma titulação sem se ausentarem de suas instituições por quatro ou cinco anos, o que seria uma perda muito grande para essas universidades. Além disso, trata-se de um programa que fomenta a pesquisa”, diz Zantut.
Para o experimento, foram selecionadas 75 pessoas obesas e com sobrepeso, todas pacientes de uma unidade de pronto atendimento localizada na cidade de Mossoró (RN). Sob a supervisão de Magalhães, Gurgel rastreou as moléculas de metabólitos encontrados em amostras de urina dos pacientes, conseguindo detectar os metabólitos presentes em cada amostra e mensurar as concentrações das moléculas. A pesquisadora selecionou 40 metabólitos, todos associados à obesidade e a questões endocrinológicas, para sua análise, identificando, ao fim, a assinatura metabólica urinária de cada participante.


Os resultados foram contrapostos a dados sobre a composição corporal dos pacientes, obtidos a partir de exames como a bioimpedância e o cálculo do índice de massa corporal (IMC). Ao confrontar as informações, a médica notou que pessoas com mais de 16 kg de gordura visceral apresentaram as maiores taxas dos metabólitos sarcosina, trigonelina e fenilalanina, relacionados, respectivamente, à resistência à insulina, à massa e força muscular e ao metabolismo da glicose e gordura abdominal. “Acredita-se que o paciente com mais obesidade visceral absorve mais trigonelina para compensar o distúrbio metabólico associado à obesidade”, explica Gurgel.
A pesquisa mostra que a gordura visceral excessiva altera a assinatura metabólica. “Aline está abrindo caminho para que outros pesquisadores possam construir uma metabolômica brasileira. Nossa população é uma das mais miscigenadas do mundo. Portanto, dados levantados aqui podem apresentar aspectos ainda desconhecidos, tanto sobre a obesidade como sobre outras doenças. O que os torna especiais, interessantes mesmo do ponto de vista financeiro”, diz Magalhães. “O perfil de obesidade do brasileiro não é o mesmo de um japonês, por exemplo. O brasileiro costuma ter mais obesidade visceral. Será que o brasileiro responderia da mesma forma à medicação? Ou necessitaria de medidas específicas?”, completa Gurgel.
Doença sistêmica, cujo desenvolvimento envolve diferentes fatores, a obesidade avança no país enquanto o combate a esse mal continua desafiando profissionais de saúde. “Existem poucos guidelines e recursos públicos para tratar a obesidade, uma questão de saúde pública”, afirma a agora doutora em endocrinologia. A partir de sua pesquisa, a médica concluiu que a assinatura metabolômica permite diferenciar cada paciente, servindo como ferramenta para aperfeiçoar o diagnóstico em cada caso. Gurgel espera que os resultados obtidos no estudo sirvam de insight para pesquisas e contribuam a fim de que, no futuro, os profissionais da área consigam determinar, por exemplo, quando a abordagem medicamentosa é mais indicada e em que situações a cirurgia bariátrica é a melhor alternativa.